RE-TRATOS 2 - PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO

A Sexualidade Infantil e Educação

O conflito entre o recalque das pulsões perversas e a produção das neuroses conduz Freud ao conflito entre pulsões sexuais e a vida em sociedade. O interesse de Freud pela educação decorre do impasse desta relação, uma vez que o recalque das pulsões perversas é obra da sociedade, da cultura, através da educação. Ou seja, a sociedade opera o recalque através das formas de educação instituídas para reprimir as pulsões perversas e produzir sujeitos compatíveis com os ideais sociais vigentes numa determinada sociedade. A educação portanto encontra-se no cerne da contradição entre as pulsões sexuais e a vida na civilização, e intervém em nome dos ideais sociais vigentes.

Em 1908, em "Moral Sexual 'Civilizada' e Doença Nervosa Moderna", Freud apresenta sua primeira elaboração sistematizada sobre o conflito entre sexualidade e civilização. Busca a etiologia das doenças nervosas, e uma ética possível entre sexualidade e vida civilizada. Faz uma critica à sociedade de seu tempo, destacadamente à moral sexual, às restrições impostas para a vida sexual em proveito da vida social, onde a sexualidade legitimada estava voltada apenas para a reprodução. Identificamos neste texto o conceito de sexualidade construído por Freud, demonstrando sua amplitude na estruturação da vida do sujeito. Neste texto Freud coloca três questões básicas que busca responder.

"(1) Que deveres exige do indivíduo o terceiro estádio de civilização?"
(2) A satisfação sexual legítima permitida pode oferecer uma compensação aceitável pela renúncia a todas as outras satisfações?
(3) Qual a relação entre os possíveis efeitos nocivos dessa renúncia e seus proveitos no campo cultural?"

Estas três questões acompanham as elaborações posteriores de Freud sobre o tema, até 1930, quando escreve o "Mal Estar na Civilização"; que constitui um marco significativo sobre a antinomia entre sexualidade e vida em sociedade, para além da psicanálise, por sua penetração em diversos campos de conhecimento sobretudo na atualidade Estas questões revelam as interrogações da condição humana.

Freud inicia "Moral Sexual 'Civilizada' e Doença Nervosa Moderna" dizendo que:

." Entretanto, um método peculiar de investigação, conhecido como psicanálise, possibilitou-nos perceber que os sintomas desses distúrbios (histeria, neurose obsessiva, etc.) são psicogênicos e dependem da atuação de complexos ideativos inconscientes (reprimidos). Esse mesmo método revelou-nos a natureza desses complexos inconscientes, mostrando que, de maneira geral, possuem um conteúdo sexual. Derivam das necessidades sexuais de indivíduos insatisfeitos, representando para os mesmos uma espécie de satisfação substitutiva. Portanto, todos os fatores que prejudicam a vida sexual, suprimem sua atividade ou distorcem seus fins devem também ser visto como fatores patogênicos das psiconeuroses"

Com base no conceito de sexualidade como registro da sensação de prazer/desprazer, já apresentado nos "Três Ensaios da Sexualidade" (1905), exposto em Re-tratos 1, Freud fala da vida psíquica como investimento da pulsão sexual, que através de sua plasticidade muda seu objeto de investimento sexual imediato, para outro não diretamente ligado à sexualidade. Esta transformação Freud chama de sublimação:
"Essa pulsão coloca à disposição da atividade civilizada uma extraordinária quantidade de energia, em virtude de uma singular e marcante característica: sua capacidade de deslocar seus objetivos sem restringir consideravelmente a sua intensidade. A essa capacidade de trocar seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas psiquicamente relacionado com o primeiro, chama-se capacidade de sublimação. "

Por meio da sublimação a pulsão sexual é desviada para outras finalidades mantendo entretanto a busca de satisfação. O conceito de sublimação introduzido por Freud lhe permite falar que a civilização está edificada no deslocamento da energia da pulsão sexual que se volta em direção às exigências sociais, suprimindo assim sua origem sexual.

"Nossa civilização repousa, falando de modo geral, sobre a supressão pulsões sexuais. Cada indivíduo renuncia a uma parte dos seus atributos: a uma parcela do seu sentimento de onipotência ou ainda das inclinações vingativas ou agressivas de sua personalidade. Dessas contribuições resulta o acervo cultural comum de bens materiais e ideais. Além das exigências da vida, foram sem dúvida os sentimentos familiares derivados do erotismo que levaram o homem a fazer essa renúncia, que tem progressivamente aumentado com a evolução da civilização. Cada nova conquista foi sancionada pela religião, cada renúncia do indivíduo à satisfação pulsional foi oferecida à divindade como um sacrifício, e foi declarado 'santo' o proveito assim obtido pela comunidade. Aquele que em conseqüência de sua constituição indomável não consegue concordar com a supressão da pulsão sexual, torna-se um 'criminoso', um 'outlaw', diante da sociedade - a menos que sua posição social ou suas capacidades excepcionais lhe permitam impor-se como um grande homem, um 'herói'."

Freud retoma e reafirma o psiquismo como sendo da ordem da sexualidade, demonstrando como a pulsão sexual transformada é deslocada para outras formas de prazer não sexual. Introduz a função da educação como responsável pela transformação operando a restrição pulsional.

"Novas perspectivas se nos oferecem ao considerarmos que no homem o pulsão sexual não serve originalmente aos propósitos da reprodução, mas à obtenção de determinados tipos de prazer. Manifesta-se desse modo na infância do homem, período em que atinge sua meta de obter prazer não só dos genitais, mas também de outras partes do corpo (zonas erógenas), podendo portanto prescindir de qualquer outro objeto menos cômodo. Chamamos a esse estádio de estádio de auto-erotismo, e a nosso ver a educação da criança tem como tarefa restringi-lo, pois a permanência nele tornaria a pulsão sexual incontrolável, inutilizando-a posteriormente."

Considera entretanto que muitos sujeitos são resistentes à supressão da pulsão sexual, não deslocando-se do objeto sexual infantil, mantendo-se na satisfação sexual direta. Neste caso a energia pulsional desloca-se produzindo danos para o sujeito. É aí que Freud situa a produção da doença nervosa ou psiconeurose.
"Entretanto, não é possível ampliar indefinidamente esse processo de deslocamento, da mesma forma que em nossas máquinas não é possível transformar todo o calor em energia mecânica. Para a grande maioria das organizações parece ser indispensável uma certa quantidade de satisfação sexual direta, e qualquer restrição dessa quantidade, que varia de indivíduo para indivíduo, acarreta fenômenos que, devido aos prejuízos funcionais e ao seu caráter subjetivo de desprazer, devem ser considerados como uma doença."

As dificuldades de supressão da pulsão sexual produzem efeitos sobre o sujeito e sobre a sociedade, pois a pulsão sexual sendo plástica e móvel irá se deslocar para a doença nervosa como forma de fuga de sua supressão sexual imediata, fragilizando a participação social do sujeito.

"O número de naturezas fortes que se colocará em franca oposição às exigências da civilização aumentará extraordinariamente, como também crescerá o número de naturezas mais débeis que, frente ao conflito entre as pressões culturais e a resistência de suas constituições, fugirão para a neurose"

"Do ponto de vista ideal, essa é a sua única realização, pois para reprimir a pulsão sexual, esgotam as forças que poderiam ser utilizadas em atividades culturais. É como se esses indivíduos estivessem interiormente inibidos e exteriormente paralisados."Freud destaca que o deslocamento da pulsão sexual para outros objetos, ou seja, na sublimação, está o êxito deste processo: a construção da civilização. Seu malogro no deslocamento para a doença nervosa ou psiconeurose.

 

 

 

"As pulsões sexuais inibidas não são mais, é verdade, expressas como tais - e nisto consiste o êxito do processo -, mas conseguem expressar-se de outras formas igualmente nocivas para o sujeito, e que o tornam tão inútil para a sociedade quanto o teria inutilizado a satisfação de sua pulsões suprimidos. Aí reside o malogro do processo, malogro que um cômputo final mais do que contrabalança a sua parcela de êxito. Os fenômenos substitutivos surgidos em conseqüência da supressão da pulsão sexual constituem o que chamamos de doenças nervosas ou, mais precisamente, de psiconeuroses. Os neuróticos são uma classe de indivíduos que, por possuírem uma organização recalcitrante, apenas conseguem sob o influxo de exigências culturais efetuar uma supressão aparente de suas pulsões, supressão essa que se torna cada vez mais falha. Portanto, eles só conseguem continuar a colaborar com as atividades culturais com um grande dispêndio de energia e às expensas de um empobrecimento interno, sendo às vezes obrigados a interromper sua colaboração e a adoecer."

Nesse contexto é que Freud critica a sociedade e suas exigências ao sujeito, conduzindo-o à doença. Temos que notar que Freud critica as exigências sociais a partir do modelo social europeu de seu tempo. Em 1908 o processo de industrialização é dominante, construindo o capitalismo industrial. As exigências subjetivas para esta construção social foram altas. A estruturação rígida da família foi o suporte mais representativo para a sustentação do capitalismo industrial, especificamente a moral sexual familiar, dirigindo a sexualidade exclusivamente para a reprodução, legitimando-a desta forma através do casamento indissolúvel. A estruturação rígida da família permitia que a propriedade privada e os meios de produção passassem para os filhos legítimos. Desse modo a elite dominante mantinha seu poder econômico e a hegemonia na sociedade. É interessante observar também, que hoje esse contexto histórico se transformou, a estrutura familiar não é a mesma, entretanto a contradição entre pulsão sexual e civilização permanece, provocando novas interrogações que merecem ser trabalhadas...

"Uma das óbvias injustiças sociais é que os padrões de civilização exigem de todos uma idêntica conduta sexual, conduta esta que pode ser observada sem dificuldades por alguns indivíduos, graças às suas organizações, mas que impõe a outros os mais pesados sacrifícios psíquicos. Entretanto, na realidade, essa injustiça é geralmente sanada pela desobediência às junções morais."

Freud enfatiza que a estruturação psíquica do sujeito é da ordem da sexualidade, e como a sexualidade não se reduz à relação sexual genital:
"O comportamento sexual de um ser humano freqüentemente constitui o protótipo de suas demais reações ante a vida. Do homem que mostra firmeza na conquista do seu objeto amoroso, podemos esperar que revele igual energia e constância na luta pelos seus outros fins. Mas se, por toda uma série de motivos, ele renuncia à satisfação de suas fortes pulsões sexuais, seu comportamento em outros setores da vida será, em vez de enérgico, conciliatório e resignado."

Como a crítica de Freud está circunscrita a seu tempo, a sociedade industrial de 1908, recai sobre a moral sexual que exigia abstinência sexual dos jovens até o casamento, legitimando a sexualidade apenas para a reprodução através do casamento.. Em sua crítica, Freud vai demonstrando as produções que se originam no desvio da pulsão sexual como produções que constituem a vida humana em sociedade.

"Entretanto, podemos afirmar que a tarefa de dominar uma força tão poderosa quanto a pulsão sexual, por outro meio que não a sua satisfação, é de tal monta que consome todas as forças do indivíduo. O domínio da pulsão pela sublimação, defletindo as forças pulsionais sexuais do seu objetivo sexual para fins culturais mais elevados, só pode ser efetuado por uma minoria, e mesmo assim de forma intermitente, sendo mais difícil no período ardente e vigoroso da juventude. Os demais, tornam-se em grande maioria neuróticos, ou sofrem alguma espécie de prejuízo. A experiência demonstra que a maior parte dos indivíduos que constituem a nossa sociedade não possuem a constituição necessária para enfrentar com êxito a tarefa de uma abstinência. Os que teriam já adoecido sob restrições sexuais mais brandas, adoecem ainda mais rapidamente e com maior gravidade ante as exigências de nossa moral sexual cultural contemporânea."

No decorrer deste texto a contradição entre sexualidade e civilização se explicita, explicitando que o recalque das pulsões sexuais é obra da sociedade. A forma como a sociedade opera o recalque é pela educação que representa os ideais simbólicos sociais. Portanto a educação encontra-se também no cerne da produção das neuroses. O recalque produzido pela educação para a construção dos laços sociais da sociedade, produz a doença nervosa moderna. A educação, ao transformar a pulsão sexual produz a neurose. No entanto a educação também produz a sublimação... Há algo nesta relação que necessita ser mais aprofundado...
As conclusões de Freud em 1908, o encaminham para a busca da profilaxia das neuroses através de uma educação profilática, como vamos acompanhar no caso do pequeno Hans.
A posição de Freud em 1908 sobre sexualidade e civilização é marcante e decorrente de seu trabalho clínico de construção da psicanálise até então. Esta mesma base orientará os aprofundamentos e transformações das posições posteriores, com relevância entre psicanálise e educação.
Re-tratos 3 vai expor a posição de Freud sobre a Educação Profilática...

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