RE-TRATOS 1 - PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO

A Sexualidade Infantil e Educação

O percurso de Freud na construção da Psicanálise abrange o final do século XIX e inicio do século XX. Tempo de crise de interesses entre capital e trabalho indicando o inicio da desmontagem de um modelo social centrado na razão iluminista. Tempo onde a fissura da razão se manifesta no tecido social. Mas também tempo de reorganização da crise, reconduzindo a razão pela mão da ciência que vai se edificando como referência para os deslocamentos sociais, cobrindo assim os conflitos emergentes. Por outro lado, tempo de construção de ideologias que visam a unificação do tecido social abalado pela razão idealista, e agora rasgado pela emergência da classe trabalhadora.

É importante relembrar que este tempo histórico introduziu a modernidade contemporânea iniciada com a revolução industrial. No inicio do século XX, a revolução industrial solicitou transformações no cenário social para prover as necessidades de uma nova forma de organização. A produtividade industrial impulsionou o capitalismo. Nos Estados Unidos Taylor concebeu a racionalização científica do trabalho fragmentando-o em diferentes etapas especializadas, onde cada operário estava encarregado de uma das partes, trabalhando sistematicamente e repetidamente, aumentando assim a velocidade da produção. O filme Tempos Modernos de Charles Chaplin expressa bem as dificuldades do homem para se adaptar à mecanização do trabalho. As exigências de aumento da produtividade industrial para o mercado competitivo promoveram a construção de um novo tipo de homem; - o homem produtivo, especializado para o trabalho, com habilidades específicas. O modelo econômico capitalista industrial hegemonizando as relações sociais solicitou uma nova formação de pessoas. Assim, este tempo de efervescentes mudanças construindo a contemporaneidade, ao promover uma nova concepção de homem, promoveu a necessidade de alterações nos padrões e códigos educacionais na família e na escola. Os padrões da educação clássica na escola vão se deslocando para a criação de outros que possam se articular ao modelo econômico da produtividade para o mercado competitivo, tanto para trabalhadores como para patrões. É um momento de abertura de debates, questionamentos sobre as formas de organização da vida social, e consequentemente sobre educação existente. A ambiência de Freud neste contexto, fez com que ele, representasse na psicanálise a crise vivida. E, imerso no processo de construção da psicanálise, utilizasse suas descobertas para fazer apontamentos sobre a educação. Vejamos as posições de Freud sobre a educação no decorrer deste percurso.

Freud é remetido a falar sobre educação de forma assistemática mas relevante, porque seu acompanhamento clínico da neurose o conduziu a um ponto básico, estrutural na construção da psicanálise: a contradição entre pulsões sexuais e civilização. Ponto este onde encontramos a educação operando esta relação, voltada para a inscrição social do sujeito na cultura, na civilização através do recalque das forças pulsionais enquanto anárquicas e destrutivas. A educação socializa em função de um recalque. Inicialmente para Freud, o recalque é produtor da neurose. O recalque é produto da educação. Desse modo não há como não olhar para a educação, na medida em que esta opera a passagem da natureza pulsional para a cultura introduzindo a renúncia pulsional. Diante da renúncia pulsional há a neurose. A renúncia ao gozo pulsional é produtora da civilização, da cultura. O preço pago para que o sujeito possa viver nos laços sociais é a neurose. Temos então de inicio uma antinomia, um impasse, pois não é possível para o homem viver fora dos laços sociais, mas para viver e se construir na civilização ele sofre com a neurose. Em função destas constatações Freud se manifestou sobre a educação e teve interesse pelas renovações educacionais.

No inicio da construção da psicanálise, em 1896 na carta a Fliess de 1 de janeiro, Freud já faz suas criticas à civilização, pois a sexualidade sadia entra em contradição com a vida em sociedade.

“Onde falta o pudor, onde a moralidade está ausente, onde o desgosto se acha enfraquecido em função das condições de existência, a repressão não se produz, e como decorrência, nenhuma excitação sexual infantil envolve repressão nem, por conseguinte, neurose. Temo contudo que essa explicação não resista a um exame mais aprofundado.”

Atualmente ainda encontramos esta idéia simplificaria para tratar do sofrimento humano; o clichê popularizado da psicanálise de que a eliminação do recalque oferece felicidade ao ser humano. A leitura apressada destas idéias de Freud inspirou os trabalhos de W Reich e Marcuse, dirigindo-os para a busca de uma sociedade sem recalques. As renovações educacionais propostas pela Escola Nova que hegemonizou a modernidade também se alimentam desta relação. Em nome dela a escola busca “não reprimir” e deixar a criança livre para se “desenvolver”. Ocorre que, se a educação não recalca, não exerce sua função de socializar o humano. Se as pulsões sexuais anárquicas não forem reprimidas a barbárie se instala e os laços sociais se desfazem...

Embora a construção da psicanálise sempre faça borda e promova debates sobre o recalque, o percurso de Freud permitiu aprofundá-lo através das interrogações produzidas em seu trabalho clínico, deslocando-o destas simplificações.

Do trabalho de Freud com as histéricas emergiu a temática da sexualidade e sua relação com a civilização, com a cultura. As reminiscências das histerias apontaram para a sexualidade infantil. Freud buscou então trabalhar a sexualidade infantil elaborando em 1905 o texto Três Ensaios sobre a Sexualidade. Nesta elaboração Freud demonstrou no primeiro ensaio, que a sexualidade nos humanos está deslocada da natureza. Ou seja, a sexualidade humana não se realiza naturalmente, pois Freud descreve como o objeto da sexualidade passa por desvios, como o objeto da sexualidade no ser humano não acompanha a natureza; é pervertido. No segundo ensaio passa à tarefa de definir o que é a sexualidade no humano, e como concebe a sexualidade infantil, criando portanto um outro estatuto para a sexualidade, distante das funções orgânicas.

“Nosso estudo do ato de sugar o dedo ou sugar sensual já nos deu as três características de uma manifestação sexual infantil. Em sua origem ela se liga a uma das funções somáticas vitais, ainda não tem objeto sexual e é, assim, autoerótica; e seu objetivo sexual é dominado por uma zona erógena”... “...a sensação agradável evocada pelo estímulo pode ser descrita como específica – uma qualidade específica em que se situaria o fator sexual”...

A sexualidade infantil é definida por Freud como registro (psíquico) da sensação de prazer/desprazer

“A qualidade do estímulo tem mais a ver com a sensação de prazer do que com a natureza da parte do corpo em questão.”
“A satisfação da zona erógena se associa, no primeiro caso, à satisfação da necessidade de nutrição. De inicio a atividade sexual se liga a funções que atendem à finalidade de autopreservação e não se torna independente dela senão mais tarde.”

Aqui Freud assinala que a sexualidade não depende do órgão, mas sim do registro psíquico da sensação de prazer. A sexualidade, portanto, está apoiada no órgão, mas a sensação independe dele. Esta é a marca da sexualidade humana fora do registro estritamente orgânico; o que demonstra a existência de sexualidade infantil antes do amadurecimento das condições físicas que possibilitam a sexualidade genital na vida adulta. Desse modo a sexualidade não está restrita à sexualidade adulta genital. O exercício da sexualidade genital adulta se estrutura a partir da sexualidade infantil, conforme expõe Freud.

“Podemos, portanto, formular um objetivo sexual de outra forma: consiste ele em substituir a sensação projetada de excitação na zona erógena por um estímulo externo que remova aquela sensação, produzindo um sentimento de satisfação”.

A sexualidade infantil da criança se apresenta de forma perversa polimorfa:
“É instrutivo o fato de que, sob a influência de sedução, as crianças podem tornar-se perversas polimorfas, e podem ser levadas a todas possíveis irregularidades sexuais”

Diante disto Freud pontua o trabalho da educação operando o recalque das pulsões sexuais perversas infantis e ao mesmo tempo assinala a dificuldade dos educadores diante das manifestações da sexualidade infantil:

“Não nos devemos iludir quanto à natureza hipotética e a clareza insuficiente de nosso conhecimento sobre os processos do período infantil de latência ou postergação, mas estaremos pisando num terreno seguro ao assinalar que esta aplicação da sexualidade infantil representa um ideal educacional de que o desenvolvimento individual via de regra se desvia em algum ponto e, frequentemente, de maneira considerável... Na medida em que os educadores prestam alguma atenção à sexualidade infantil, eles se comportam exatamente como se partilhassem nossos pontos de vista quanto à construção das forças defensivas morais à custa da sexualidade, e como se soubessem que a atividade sexual torna uma criança ineducável, pois eles estigmatizam toda manifestação sexual das crianças como um vício, sem poderem fazer muito a respeito. “

Fica enfatizado até aqui que a educação tem por finalidade a transformação da sexualidade infantil perversa.

“É durante o período de latência total ou apenas parcial que se constroem as forças psíquicas que irão mais tarde impedir o curso da pulsão sexual e, como barreiras, restringir seu fluxo – a repugnância, os sentimentos de vergonha e as exigências dos ideais estéticos e morais. Tem-se das crianças civilizadas uma impressão de que a construção dessas barreiras é um produto da educação, e sem dúvida a educação muito tem a ver com ela”

A questão que permanece é sobre o conflito entre recalque das pulsões perversas e a predução da neurose. Ou seja, como a educação viabiliza os ideais simbólicos da civilização operando o recalque das pulsões perversas infantis, inscrevendo o humano na vida social, pode também produzir neurose? Nesse sentido Freud faz a critica da educação vigente, alinhando-se nesse aspecto aos movimentos que visam transformações na educação escolar. Os motivos de Freud orientam-se na busca da não produção da neurose. De toda forma o impasse permanece... Deste impasse emergem os estudos sobre Educação e Subjetividade.

Em Re-tratos 2 acompanharemos o encaminhamento de Freud diante deste impasse...


Bibliografia

· CIFALI, MIREILLE e F. IMBERT. Freud e a Pedagogia, S.P., Ed. Loyola, 1999.
· MILLOT, CATHERINE, Freud Antipedagogo, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1987.
· FREUD, SIGMUND. Três ensaios sobre a teoria da Sexualidade, Editora Imago, Rio de Janeiro, 1975

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