Textos Inéditos

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Leitura e Escrita Como Acesso do Sujeito à Lei Simbólica

MARIA LUIZA ANDREOZZI 


DO MUNDO COISA PARA O MUNDO DA PALAVRA

O mundo Coisa, das sensações, das impressões, das imagens, é bastante particular e conseqüentemente caótico, desorganizado, anárquico e sem sentido para ser compartilhado de modo a permitir qualquer leitura que produza laços sociais. A linguagem dá sentido às coisas, imagens, impressões e sensações, ordenando-as por uma lei simbólica, ligando essas imagens e impressões a uma palavra. A estrutura da linguagem permite que a Coisa em si – impressões, imagens – e seja recortada por uma palavra que lhe dá sentido, significado; tecendo entre a Coisa e a palavra uma relação. Relação social, pois através da palavra os laços sociais se constituem, constituindo-se um mundo social histórico compartilhado; o mundo humanizado. Nesse processo a Coisa é recortada, pois a imagem, a sensação ao ser nomeada, deixa de SER totalidade inacessível para Ter um sentido. O recorte que dá sentido à coisa, à imagem, impressão, é possível mediante um código, uma lei social simbólica que intervém e interdita, faz um corte na coisa em si, na multiplicidade de sentidos das impressões e imagens e permite um deles. A linguagem corta, separa, discrimina e também liga a Coisa-imagem a uma palavra que a representa e assim substitui a Coisa. A linguagem opera uma lei simbólica que regula e organiza os sentidos através da palavra, da nomeação da imagem, de forma arbitrária à imagem. A Coisa em si, o mundo Coisa desaparece e o mundo simbolizado, nomeado, substitui o mundo Coisa pela palavra. Assim a imagem se oculta na palavra e a coisa subjaz ao nome. O mundo humano está estruturado pela linguagem através da palavra.

Na linguagem e enquanto linguagem o mundo coisa sem sentido passa a ter sentido para o humano enquanto mundo simbólico estruturado pela lei da linguagem. Assim o mundo material se humaniza, pois a nomeação é obra humana, social, histórica. A construção do mundo humano é a construção do mundo simbólico constituído na lei da linguagem. O mundo humano é então o mundo simbólico e não natural. Um mundo onde o natural, sem sentido, caótico da coisa em si, passa a ter sentido para o humano. Um sentido simbólico estruturado como linguagem pela palavra. Um mundo escrito na linguagem e como linguagem passível de ser lido.


O ACESSO AO MUNDO SIMBÓLICO

Temos que considerar então como a criança ao nascer tem acesso à lei da cultura, ao mundo simbólico COMPARTILHADO, mundo escrito, mundo enquanto linguagem. O acesso da criança AO MUNDO SIMBÓLICO COMPARTILHADO dos laços sociais se dá através da EDUCAÇÃO que opera a transmissão da lei simbólica na qual a sociedade se organiza, permitindo dessa forma que o próprio sujeito se organize. Educação enquanto ato de inscrição do sujeito na sociedade e na cultura pela via da palavra.

Primariamente através dos pais. Os pais educam quando simbolizam a criança através do discurso que elaboram sobre ela, para ela, para acolhê-la. Os pais enquanto seres da linguagem nomeiam a criança marcando-a com seus ideais, suas expectativas. Escrevem na criança seu desejo, simbolizando-a em função da posição que ocupam na cultura. Como seres da cultura, da linguagem e posicionados nela, simbolizam a criança da forma particular com que representam essa cultura. A criança se inscreve nos laços sociais mediatizada pelo desejo dos pais, manifesto no discurso dos pais. Os pais nomeiam a criança diferenciando-a, destacando-a da natureza genérica de criança para que ela seja a particularidade de Joana, Pedro, Isabel... Esta nomeação condensa a idealização dos pais e da cultura sobre a criança. Por sua vez, criança assim falada pelos pais encontra nesse discurso a matriz de suas identificações primárias, encontra sua filiação na cultura. Reproduz em sua fala o discurso no qual é falada, constituindo-se como sujeito na palavra dos pais, e através dela inscreve-se no mundo simbolizado.

O acesso da criança ao mundo simbólico secundariamente também se dá na educação escolar. A EDUCAÇÃO ESCOLAR está implicada na transmissão da lei simbólica da cultura presente nos conhecimentos socializados e historicamente formalizados. A educação escolar sustenta-se na lei simbólica da cultura. Em nome dela é que a educação escolar ocorre, dado que a educação é guardiã da sociedade, dos conhecimentos historicamente construídos enquanto universais simbolizados a serem transmitidos. A educação escolar por excelência transmite a lei simbólica presente nos conhecimentos socializados na medida em que esses conhecimentos foram construídos a partir dessa lei simbólica. Assim os conhecimentos representam a cultura; são produções simbólicas da cultura (enquanto linguagem).

A escola como instituição educativa, ao transmitir os conhecimentos universais socializados, opera a passagem do lugar infantil – privado, particular da família, para um – lugar Outro - fora da família, lugar do código, da lei que estrutura o mundo simbolizado a que a própria família está subordinada.

Ler e Escrever a partir da lei de socialização - da lei simbólica da linguagem, de forma sistemática e rigorosa na sociedade moderna, é função da educação escolar.

A Leitura ocorre então em função da escrita de um Outro – história escrita enquanto linguagem. Portanto é na educação escolar que a criança se encontra mais diretamente com a lei simbólica, com o código para ler o enigma que foi escrito pelo Outro, o que foi escrito antes dela no processo histórico.

Neste contexto, Ler implica em ler as marcas, os traços, a letra que o Outro escreveu. Ler envolve uma relação com o Outro que escreveu. Escrever implica em representar na escrita – com marcas, traços, letras - o que se fala, para marcar o Outro, a cultura, a linguagem com seu traço, sua letra.

O ato educativo na escola convoca o sujeito a ler o que foi escrito pelo Outro. LER A HISTÓRIA DO HOMEM SIMBOLIZADA INSCREVENDO-SE NELA ATRAVÉS DE UMA FORMA PRÓPRIA DE SIMBOLIZÁ-LA, ou seja, de escrevê-la.

O ato de ler e escrever na educação escolar implica em construção da subjetividade MEDIANTE A APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS SIMBÓLICOS HISTÓRICOS QUE A ESCOLA DISPONIBILIZA para o sujeito. A passagem pela educação escolar para ler e escrever implica um mais além da instrumentalização da leitura e escrita, pois ler e escrever da forma socialmente compartilhada envolve a passagem de um lugar privado de ler e escrever - a família - para um lugar público, histórico-social. Lugar onde a inscrição no código social (lei social) é indispensável. Na educação escolar o sujeito tem acesso ao mundo da letra socialmente simbolizada, onde a letra não vale por si, mas pelo que representa no código socializado da cultura.


LER E ESCREVER COMO ACESSO DO SUJEITO À LEI SIMBÓLICA

Ler e escrever implica no acesso do sujeito à lei simbólica que organiza os valores diferenciais das marcas, dos traços, dos cortes, das letras.

Isto significa que não é qualquer traço que pode ser identificado como R, como Z – a lei determina qual traço pode e qual não pode. Não depende de nossa preferência particular, pois a lei discrimina e diferencia um valor do Outro - para que a leitura ou escrita do traço seja compartilhada socialmente enquanto universal. O traço, a letra, não valem pelo desenho, pela imagem, mas pelo que simbolizam – o que significam socialmente. Convocam o sujeito a entrar no mundo da letra simbolizada, submetendo o predomínio do sentido particular das imagens ao sentido simbólico da letra, operando um corte, uma ruptura entre a imagem (particular) e a letra (socialmente simbolizada).

No código universal simbolizado da nossa língua, passarinho pode ser lido com Ç, mas não pode ser escrito com Ç e sim com SS. Ou seja, a lei da língua proíbe para que haja discriminação, separação e socialização do traço com o qual é reconhecida socialmente a escrita de passarinho.

A incorporação desta lei implica na travessia do lugar infantil onde predomina a imagem enquanto particular, para o lugar onde a imagem enquanto particular privado se desloca para um segundo plano dando lugar à letra - palavra que simboliza a imagem.

A construção da leitura e escrita enquanto ato simbólico da cultura está inscrita numa quantidade de frustração, de insatisfação presente na separação entre imagem e letra.
Por exemplo - O número dois – 2 – para ser conceituado e lido naquilo em que a cultura o reconhece e simboliza como produção do conhecimento acumulado historicamente NÃO pode ser aceito como sendo, por exemplo, a imagem de um patinho (naquilo em que graficamente 2 pode se assemelhar com patinho), ou permanecer como duas unidades de lápis e assim se fixar na imagem. Ou seja, a particularidade imaginária com que alguém pode representar um número, uma letra, não pode se sobrepor àquilo que está reconhecido e simbolizado socialmente. Sem o reconhecimento social não seriam possíveis as trocas, ou seja, a própria relação social como troca, pois cada coisa seria para cada um outra “coisa” imaginada, a que o outro não teria acesso, pois a particularidade de um é que estaria predominando.

Os conceitos seguem leis universais, não posso mudá-los ao meu prazer. Posso colocá-los em discussão a partir da lei simbólica que os constituiu. Submetida a esta lei simbólica, posso introduzir novos elementos aos que já existem conceituados simbolicamente. Para a aquisição dos conhecimentos, que seja, a leitura e escrita, ainda, o número dois, tem-se que reprimir a imagem das duas unidades de lápis, elas deixam de existir para que o dois – 2 – represente-as simbolicamente, ocupe esse lugar, substituindo as unidades pelo conceito que simboliza * * . Para construir o conceito de número dois a criança passa por uma dose de frustração, de insatisfação; perde uma dose de satisfação imediata – a de ver as imagens * *, por exemplo – de dois lápis; mas pode repô-la num outro plano, no plano da elaboração simbólica da cultura, onde 2 substitui * *, quando conceitua o número dois. Perpetuar a imagem do patinho ou a presença de duas unidades (lápis, carrinhos) esperando que “naturalmente” a criança conceitue o dois é perpetuar uma posição infantil que tem seu lugar para ser substituída.

Cabe ao professor, em nome da cultura, como representante do mundo simbolizado, impedir a perpetuação da imagem do patinho, da presença das unidades, impedir a continuidade do prazer imediato particular, promovendo e acompanhando o trabalho subjetivo da criança diante da lei simbólica, para que a construção do número dois enquanto produção socializada, representação simbólica da cultura, possa ser elaborada em substituição à presença física das unidades.

Estamos falando aqui que o acesso à cultura só é possível com uma dose de recalque da satisfação imediata particular da imagem, com uma dose de insatisfação, de trabalho por onde a cultura entra enquanto substituição, enquanto troca simbólica. A cultura enquanto um Outro lugar que não o infantil é o lugar das trocas simbólicas onde estão inscritas as aprendizagens e enquanto tal a leitura e a escrita socializadas.

As aprendizagens, desde a leitura e a escrita, estão inscritas como trocas simbólicas que façam sentido para o sujeito, criativamente. Para isto um NÃO precisa ser introduzido, um não firme e carinhoso que mostre as diferenças, as alternativas de troca para a criança, as alternativas de construção no plano simbólico daquilo que ela perde no particular do imaginário infantil.

Estamos falando de um NÃO que introduz as relações simbólicas, culturais, longe da escola da palmatória a que o “não” pode remeter alguns. Pois a modernidade, e com ela a educação moderna, ao se construir como liberalismo, dissimulou a palmatória, disfarçando os controles e a disciplina, e legitimou um tipo de não – “não pode ser diferente” – a igualdade, onde aparece só o sim... um mesmo modelo de desempenho padronizado para todos.

A legitimação da criança como sujeito da lei simbólica, da linguagem, se efetiva na educação escolar através da construção da leitura e escrita formalizadas a partir da lei da cultura. Pois a educação escolar transmite a lei simbólica e sustenta seu lugar social ao ensinar a leitura e escrita socialmente compartilhadas.

Mas para a criança essa travessia implica em idas e vindas, implica em conflitos do sujeito diante da lei, posições específicas diante da lei, vicissitudes do sujeito diante da lei. Produz diferentes formas de subjetividade. Pois a lei implica em trocas simbólicas, e trocas simbólicas implicam em perder algo, implicam em substituições, em ausência de algo para que este algo possa ser simbolizado... Enfim, implicam numa dose de insatisfação... Condições difíceis, uma vez que a imagem, o prazer imediato, a satisfação plena, a não-frustração, o ganhar sempre e nunca perder dominam as formações sociais e contaminam os princípios pedagógicos.

Ler e Escrever concebidos de forma rigorosa e precisa como operações estruturadas na linguagem não se “desenvolvem” naturalmente; são construções árduas e difíceis, pertinentes à vida do homem nas trocas simbólicas da vida em sociedade, portanto envolvidas numa dose de mal estar.


EDUCAÇÃO E SUBJETIVIDADE

Cabe ao educador ensinar, transmitir a lei simbólica presente na leitura e na escrita e demais conhecimentos históricos transmitidos na escola.

Cabe ao psicopedagogo acompanhar as marchas e contramarchas do sujeito operando trocas simbólicas na travessia pelo ato educativo em seu acesso à lei simbólica, ao código simbólico transmitido na escola. Para tanto, a intervenção psicopedagógica deve sustentar-se no ato educativo e sustentá-lo como ato que socializa e subjetiviza nas trocas simbólicas. Dito de outro modo, o psicopedagogo investe na subjetividade do ato educativo, na emergência da subjetividade produzida nas trocas simbólicas.


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