Fragmentos

Hannah Arendt – Entre o Passado e o Futuro, editora Perspectiva, capítulo: “A Crise da Educação”

Certamente, há aqui mais que a enigmática questão de saber por que Joãozinho não sabe ler. Além disso, há sempre a tentação de crer que estamos tratando de problemas específicos confinados a fronteiras históricas e nacionais, importantes somente para os imediatamente afetados. É justamente essa crença que se tem demonstrado invariavelmente falsa em nossa época; pode-se admitir como uma regra geral neste século que qualquer coisa que seja possível em um país pode, num futuro previsível, ser igualmente possível em praticamente qualquer outro país.

Há um fato adicional, contudo, e que se tornou decisivo para o significado da educação, de que esse pathos do novo, embora consideravelmente anterior ao século XVIII, somente se desenvolveu conceitual e politicamente naquele século. Derivou-se dessa fonte, a princípio um ideal educacional, impregnado de Rousseau e de fato diretamente influenciado por Rousseau, no qual a educação tornou-se um instrumento da política, e a própria atividade política foi concebida como uma forma de educação.

..."educação” soa mal em política; o que há é um simulacro de educação, enquanto o objetivo real é a coerção sem uso da força.

... em parte alguma os problemas educacionais de uma sociedade de massa se tornaram tão agudos, e em nenhum lugar as teorias mais modernas no campo da Pedagogia foram aceitas tão servil e indiscriminadamente. Desse modo a crise da educação americana de um lado anuncia a bancarrota da educação progressiva e, de outro, apresenta um problema imensamente difícil, por ter surgido sob as condições de uma sociedade de massas e em resposta às suas exigências.

Sob influência da Psicologia moderna e dos princípios do Pragmatismo, a Pedagogia se transformou numa ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser ensinada.

Por precisar ser protegida do mundo, o lugar tradicional da criança é a família, cujos membros adultos diariamente retornam do mundo exterior e se recolhem à segurança da vida privada entre quatro paredes.

Quanto mais completamente a sociedade moderna rejeita a distinção entre aquilo que é particular e aquilo que é público, entre o que somente pode vicejar encobertamente e aquilo que precisa ser exibido a todos à plena luz do mundo público, ou seja, quanto mais ela introduz entre o privado e o público uma esfera social na qual o privado é transformado em público e vice-versa, mais difíceis torna as coisas para suas crianças, que pedem, por natureza, a segurança do ocultamento para que não haja distúrbios em seu amadurecimento.

Normalmente a criança é introduzida no mundo pela primeira vez por meio da escola. No entanto, a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é em vez disso a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo.

Em todo caso, todavia, o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade, embora não o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é. Essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança. Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação.

A autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa. Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si a autoridade... sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo.

Qualquer que seja nossa atitude pessoal face a este problema, é obvio que, na vida pública e política, a autoridade ou não representa mais nada - pois a violência e o terror exercidos pelos países totalitários evidentemente nada tem a ver com a autoridade... pois sempre que a autoridade legítima existiu ela esteve associada com responsabilidade pelo curso das coisas no mundo.

Evidentemente, há uma conexão entre a perda de autoridade na vida pública e política e nos âmbitos privados e pré-políticos da família e da escola.

É como se os pais dissessem todos os dias: - nesse mundo, mesmo nós não estamos muito a salvo em casa; como se movimentar nele, o que saber, quais habilidades dominar, tudo isso também são mistérios para nós. Vocês devem tentar entender isso do jeito que puderem; em todo caso, vocês não têm direito de exigir satisfações. Somos inocentes, lavamos as nossas mãos por vocês.


... parece-me que o conservadorismo, no sentido de conservação, faz parte da essência da atividade educacional, cuja tarefa é sempre abrigar, proteger de alguma coisa...

Basicamente estamos sempre educando para um mundo que ou já está fora dos eixos ou para aí caminha, pois é essa a situação humana básica...

O problema é simplesmente educar de tal modo que um pôr-em-ordem continue sendo efetivamente possível, ainda que não possa nunca, é claro, ser assegurado...

O problema da educação no mundo moderno está no fato de, por sua natureza, não poder esta abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem na autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição.

... a função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver. Dado que o mundo é velho, sempre mais que elas mesmas, a aprendizagem se volta inevitavelmente para o passado, não importa quanto a vida seja transcorrida no presente.

Não se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar, uma educação sem aprendizagem é vazia, portanto degenera, com muita facilidade, em retórica moral e emocional. È muito fácil, porém, ensinar sem educar, e pode-se aprender durante o dia todo sem por isso ser educado.

A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens.

A educação é também onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.


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