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A Metáfora Paterna e a Construção do Conhecimento Como Desejo do Outro

MARIA LUIZA ANDREOZZI


Artigo publicado na revista Estilos da Clínica do Instituto de Psicologia da USP, São Paulo, 1996, volume 1


1- A Construção da Inteligência Como Inscrição do Significante

O acesso ao conhecimento no sentido operatório formal, da maneira como Piaget o elabora, introduz a uma concepção em que o sujeito constrói sua inteligência como uma estrutura que opera se distanciando do imediato da percepção; isto é, como uma estrutura lógica. Na ausência da percepção, a inteligência reconstrói o imediato da percepção experienciada através de representações lógico-conceituais. A lógica conceitual implica na ausência da “coisa” percebida enquanto tal. Esta é deslocada para um plano onde passa a existir condensada na representação conceitual, enquanto construção que não é mais a “coisa” percebida, mas um conceito que significa a coisa, por meio de uma operação lógica.

Na verdade, deixando Piaget neste momento entre parênteses, verificamos que a representação ocorre desde o momento em que a “coisa” é percebida, pois esta “coisa” passa a ser um objeto quando nomeada pela linguagem, senão continuaria “coisa”. Isto quer dizer que o conceito no sentido de representar uma “coisa” percebida que significa o objeto se inicia antes do momento em que Piaget caracteriza a inteligência como uma estrutura formal, operativa e, portanto, conceitual.

Podemos acompanhar Piaget quando ele fala do nascimento da inteligência como construção sensório-motora, subordinada à percepção do objeto; no entanto, introduzimos que tal construção sensório-motora está subordinada ao desejo do outro-mãe. A percepção do objeto será direcionada então pelo desejo da mãe, que ao se relacionar com a criança apresenta certos objetos a serem percebidos de
determinada maneira. Ou seja, inscrevendo nesta forma de dispô-los para a criança o seu desejo (inconsciente), ela circunscreve e marca assim a própria percepção da criança como percepção de... A percepção, portanto, não se dá sem a mediação do outro. Ao inscrever a percepção da criança como percepção de..., o desejo (inconsciente) da mãe expõe a criança a um significante - o significante de seu desejo incorporado na percepção de... Por esta via, a presença marcante neste processo não é da percepção, mas do significante que inscreve o desejo na percepção, nomeando-a. A percepção se constitui enquanto tal, mediada pelo desejo.

É a linguagem (O Outro), que, ao introduzir a palavra, recorta o mundo percebido, nomeando os fragmentos deste. O mundo seria uma grande “coisa percebida”, ou várias “coisas percebidas” num todo não diferenciado e sem significado e sem sentido, como puro significante se a linguagem não o recortasse, nomeando-o. O sentido para este significante está na palavra que a linguagem introduz ao fazer o recorte da “coisa”, nomeando-a, transformando-a em objeto, atribuindo um sentido à “coisa”.

Neste processo convivem os movimentos dos sentidos, das percepções enquanto significantes que representam o desejo e invadem o sujeito; com os movimentos dos recortes do percebido feitos pela palavra, como inscrição do desejo, dando sentido ao percebido, significando o percebido por meio de uma representação (linguagem). O que é percebido, por sua vez, deixa assim de ser exclusivamente o percebido e passa a ser o recorte do percebido por meio da nomeação que este percebido recebe. Quando digo convivem, entendo que estes movimentos não seguem uma seqüência linear evolutiva nos moldes de um “desenvolvimento”, primeiro um, depois o outro. Esse percurso é o percurso do significante que, entre idas e vindas, não parando de se inscrever, produz por meio de desmontagens e remontagens a construção do psiquismo enquanto representação da “realidade”(*); a construção do próprio sujeito. Nesse processo o significante também inscreve os movimentos da inteligência como uma representação possível do significante recortado pela linguagem, enquanto cognição, conhecimento.

O ponto nuclear aí é a representação, pois o processo psíquico se constitui como representação, tecido no qual se estrutura o sujeito humano representado por um significante. É através do significante que a “realidade” se expressa e permite que o sujeito dela se aproprie enquanto significante e represente a si próprio para a “realidade”, também pela via do significante. O sujeito estrutura nesse percurso sua inteligência, construindo-a como função que opera conjuntamente; a objetividade manifesta sempre a subjetividade do significante do desejo inconsciente.

A objetivação humana expressa a representação do significante no qual o sujeito encontra as possibilidades de se representar simbolicamente como sujeito. A inteligência, como estrutura operativa, é construída por meio da inscrição do significante que articula representações por onde transita a relação entre subjetividade e objetividade; onde a subjetividade se objetiva e a objetividade se subjetiva, articuladas pelo percurso do significante ao produzir significados.

A construção dos conhecimentos, portanto, trabalho sinuoso da inteligência manifesta no sujeito epistêmico é construída no percurso de movimentação do significante que representa o desejo.



(*) Colocamos realidade entre aspas para lembrar que a realidade é aquela representada pela cadeia de significantes que constrói um discurso, construindo desse modo a própria realidade.




2- Vicissitudes do desejo de conhecer do outro

O que Piaget deixa de lado são as representações singulares que o sujeito faz nas representações conceituais que elabora, nos sistemas que articula, na forma como opera. Pois, a representação, mesmo em sua forma mais abstrata da lógica formal conceitual, nunca exclui o sujeito enquanto sujeito representado por um significante que, articulado numa cadeia de significantes, produz sentido e se produz aí como sujeito. Por este motivo o sujeito constrói o conhecimento como discurso articulado de significantes, representando-se nesta relação neste discurso.

As construções feitas pelo sujeito expressam sempre um sentido, que ao fim e ao cabo estão remetidas a um não saber (inconsciente). Quaisquer que sejam as construções que o sujeito faça, fogem às expectativas do processo consciente e sobretudo fogem às expectativas escolares. Essas manifestações expressam a forma possível que o sujeito encontra para se representar, mesmo que por meio de um tropeço. Na construção de um tropeço também repousam significantes produzindo um sentido (inconsciente), aparentemente “sem-sentido” consciente. Há uma lógica nessa construção, a lógica do significante, a lógica do inconsciente. Visto dessa maneira, há aí um “aprender” (inconsciente) do “não aprender” consciente. E aí é que se situam as vicissitudes do conhecer... que não seguem uma linearidade evolutiva e padronizável. E que surpreendem educadores e psicopedagogos presos a uma linearidade evolutiva, padronizada e normativa... Pois os sentidos articulados na cadeia de significantes não se expressam necessariamente de forma padronizável. A produção do sentido se dá inclusive nos tropeços da aprendizagem, contendo uma mensagem cifrada que requer deciframento pela via do acompanhamento da escuta...

Por que alguém prefere falar de “terra” na sociologia e não na geologia se ambas estão à disposição do sujeito na cultura? Possivelmente porque este sujeito se sente mais representado falando de “terra” na sociologia... E mesmo assim, “terra” tem uma significação particular para cada sujeito... pois aí repousam significantes inconscientes da singularidade do desejo. Isto faz com que a “terra” na sociologia, para este sujeito, se torne objeto de conhecimento, ou seja, faz com que este sujeito se objetive, simbolize significantes em suas produções sobre este objeto de conhecimento “terra” enquanto significante.

Este processo nos remete a outro. O que faz com que o sujeito tome alguns objetos da cultura para seu conhecimento e não outros? O que faz com que a criança aprenda certos conceitos e não outros, dado principalmente que ela manifesta a possibilidade (aparente-consciente) destas aprendizagens?

Como acompanhar este percurso?

Retornando ao Estádio do Espelho proposto por Lacan, podemos saber que a criança se estrutura no desejo do outro (mãe). Assim, a direção que a criança percorre para conhecer é aquela indicada pelo desejo (inconsciente) do outro que a constitui, na posição em que está inscrita em relação a esse desejo.

Essa relação é fundante para a criança, como já foi exposto, porque a constituição da criança no desejo da mãe a torna investida de desejo (da mãe), investida dos significantes dados pela mãe que suportam os significantes que dela emergem. Assim ela deseja o objeto de desejo da mãe, e a própria mãe como seu objeto, porque está identificada com a mãe, sustentando-se nos significantes que esta lhe oferece. Os objetos do desejo, possíveis de serem constituídos enquanto objetos de conhecimento, se constroem enquanto aquisições para a criança na medida em que forem objetos de desejo/conhecimento da mãe.

Isto se considerarmos que a criança se posiciona de modo direto em relação ao desejo da mãe, o que é uma simplificação do movimento. A criança pode se posicionar de diferentes modos, por exemplo, negando o desejo da mãe. De qualquer maneira a referência para ela constituir seu desejo é a posição que ocupa em relação ao desejo do outro (mãe).

A criança como falo da mãe está assujeitada ao desejo do outro-mãe, que a estrutura enquanto semelhante a ela. Esta relação constitui a ontogênese da criança, pois a posição da criança se espelhando na imagem do outro faz com que ela se reconheça no outro (mãe) como humano, e ao outro como semelhante humano. Ao nascer, a criança está envolvida no mundo dos significantes e o sentido inicial para estes significantes, o suporte inicial para sua significação, é dado pelo desejo da mãe expresso no discurso desta sobre a criança. Esse discurso articula significantes, atribuindo-lhes sentido. Nesta armação, ou rede inicial, a criança se estrutura no desejo do outro, por uma operação da função materna, estabelecendo um laço social, sua relação como humano no mundo humano, com seus semelhantes.

A mãe representa para a criança, TUDO. Completude. Nada lhe falta que a mãe não possa lhe suprir. Não há nada fora da mãe, a mãe responde a todas as necessidades da criança, nada lhe falta. A mãe atende a criança com um DISCURSO DO SABER. A criança é o falo imaginário do desejo da mãe; e a mãe é o falo imaginário da criança. Falo considerado como

“a representação construída com base nessa parte anatômica do corpo do homem” (Nasio, 1989; pág. 33).

A presença e ausência do falo inscrevem psiquicamente as diferenças sexuais. Quando a mãe se apresenta como falo da criança e esta como falo da mãe, as diferenças sexuais se anulam porque nenhuma delas deixa de ter o falo. Ambas, uma por meio da outra, têm o falo (Saber), o que as envolve numa relação de completude, de totalidade, uma vez que nada lhes falta. Aqui não há falta. Ter o falo assume o sentido de que não há Outro, pois um se complementa no outro como se fosse o mesmo. Este é o sentido do imaginário, dado que as relações acontecem aqui pelo espelhamento de imagens de um no outro.

O Saber como Falo que circula na relação fechada entre ambos, mãe e filho, dificulta a busca de um Saber Outro fora desta relação, por exemplo, na escola como lugar diferente. O desejo de conhecer pode ficar paralisado...


3- O conhecimento como (re) conhecimento da metáfora paterna

Algo acontece para impedir que esta mãe seja tudo para a criança... - a castração.
Ao vivenciar a situação edipiana e a castração, a relação da criança com a mãe sofre um corte, a unidade entre mãe e filho se rompe. A criança deixa de ser o falo da mãe e a mãe deixa de ter na criança seu falo. É introduzida a FALTA, A PERDA. Este corte acontece pela intervenção da função paterna que interdita o incesto, o investimento pulsional exclusivo de um para outro.

A castração entra no desejo fálico da mãe quando seu desejo é submetido a algo que lhe é exterior, que não depende dela. Quando, ao falar, esta mãe se remete a um Outro além dela, à linguagem, na qual ela possa se referir e sustentar seu discurso, está submetida à castração. Para discursar, a mãe se remete às leis da gramática que independem dela, pertencem ao código da linguagem a que ela está submetida e ordenada no sentido de ter um luga, mãe. O lugar mãe é possível se remetido a um Outro lugar - Pai, que não é o dela, mãe. Se ela não é o pai, e para ser mãe remete-se ao pai, a um Outro que não é ela, há um Outro que lhe falta. Fica então introduzida nela mãe, a FALTA - ou seja aquilo que ela não é, para poder falar daquilo que é. Assim se introduz a castração materna. Em Nome do Pai é que ela se diz mãe, referindo-se a uma Lei que ela reconhece, para falar quem é o pai, reconhecendo o pai de seu filho e com isto a filiação. Na medida em que o pai é reconhecido, o filho está posicionado diante dele, e não mais exclusivamente posicionado diante da mãe. A castração fica assim introduzida.

O Nome do Pai é a Lei porque ele introduz de fora da unidade mãe-criança UM sentido no qual mãe-criança podem se diferenciar ocupando os lugares dados pela cultura como de mãe e de filho, deixando ambos de serem o mesmo, ou deixando a vivência incestuosa da pulsão que busca o prazer indiscriminadamente. É introduzida com a Lei do Pai uma discriminação - ou seja, um sentido, e para tanto a indiscriminação é barrada. O Nome do Pai é Simbólico, pois o sentido é algo que rompe com a natureza, que barra a mãe como “natureza”, que pode tudo, para que esta seja representada na cultura, num lugar discriminado da mãe; onde ser mãe tem um sentido na instituição dos laços sociais, dos laços que instituem o parentesco, ou seja, a própria cultura. O lugar de mãe faz um sentido. Em Nome do Pai, a mãe deixa de ser TUDO para a criança, algo lhe falta, de modo que ela busca no Outro, ou seja, na cultura, a representação da sua falta. A Função Paterna é Simbólica porque o pai só tem lugar na cultura, quando a mãe o nomeia, submetendo-se à linguagem, à cultura como lugar diferente daquele que ela ocupa.

Com a lei de interdição do incesto, a criança perde seu falo, é castrada dele (mãe). Esta perda, esta ausência, deixa um vazio que promove o desejo... de algo... que venha a ocupar esse lugar, ou seja, a substituição do desejo da mãe pelo Nome do Pai.

A interdição da mãe-falo, enquanto objeto de desejo da criança, instala o vazio e promove o desejo que faz a criança buscar o objeto de seu desejo em outro lugar (no Outro), distante da mãe, fora desta vivência “natural” de satisfação imediata indiferenciada.

Aqui se introduz a Metáfora Paterna. A Metáfora como figura de linguagem introduz, configura a possibilidade de substituir um sentido por outro, produzindo assim um sentido a mais.

“A Metáfora Paterna é a operação de substituição, no código, do desejo da mãe pelo Nome do Pai, produzindo a significação fálica” (Lacan, 1998H; pág. 563)

A Metáfora Paterna inscreve o significante falo como significante da falta, da castração. Assim, a Metáfora Paterna possibilita ao significante falo - da falta - assumir outras significações no campo simbólico (do Outro), por operar substituições em Nome do Pai, isto é, que o Nome do Pai pode ocupar. O objeto de desejo da mãe - a criança como seu falo -, sendo barrado em Nome do Pai, marcando a falta, introduz o significante falo como falta, que assim pode ser substituído por outros objetos (da cultura, do Outro, do Simbólico), que representem a falta (a castração). O Objeto de desejo da mãe, interditado em Nome do Pai, passa a ser substituído e representado por um sentido (do Outro), por meio da Metáfora Paterna que ocupa o lugar do Nome do Pai.

No campo da linguagem, inúmeros são os significantes e as significações. Se todas são possíveis, como fica nossa compreensão? Ficaria impossível. Por meio da Metáfora Paterna a inscrição incessante do significante como ausência de significado, com inúmeras e variadas possibilidades de significação que se cruzam, podem repousar sua materialidade sobre um sentido. Este sentido articula a cadeia de significantes, S1--S2--S3--, gerando o discurso articulado e compreensível, porque referido a uma Lei que o organiza. Há aqui um ponto de consenso, senão haveria delírio. Neste ponto de consenso em que a Lei instaura se produz o laço social, porque a lei estabelece os limites, os cortes nos quais se produz um sentido, ou seja, o re-conhecimento do outro. Sem discriminação não há sentido, não há ponto de consenso e nem re-conhecimento do outro como diferente, já que o mesmo prevalece.

Esta passagem pela castração permite que os significantes possam se deslocar e deslizar, produzindo representações simbólicas, INSCRIÇÕES NO SIMBÓLICO (que não são o falo, pois este está interditado, mas que o representam), marcadas pela diferença entre os sexos que inscreve na cultura homem e mulher. A representação simbólica dessa maneira ressignifica a perda do falo (mãe), re-construindo-o (S1) nos objetos da cultura, enquanto significantes (S2) que substituem S1 na cadeia do discurso, cujo acesso é permitido à criança. Ao mesmo tempo essa re-construção produz um suposto saber sobre um não-saber (inconsciente) da sexualidade recalcada diante da castração, cujo conhecimento busca de modo deslocado re-constituir, re-conhecer, dado que conhecer é impossível.

“Porém, sabemos da mesma forma que não só o real torna-se enigmático conforme a posição subjetiva em relação ao desejo do Outro, mas que os próprios rodeios dados pela criança na sua empresa de (re)construir um Conhecimento sobre a diferença encontram-se em função das vicissitudes que a mudança de posição implica em si mesma que, aliás, são as vicissitudes não padronizáveis do Édipo. Nesse sentido, cabe dizer que a (re)construção do conhecimento inerente à diferença sexual entretece-se ou entrelaça-se com a logiciadade sui generis que toma conta do processamento do Saber, que conduz o sujeito a querer e a não querer saber sobre o desejo, irá estruturando esse processo epistêmico (re)construtivo”. (Lajonquière, 1993; págs. 229-230).

Acontece por meio da Metáfora Paterna uma re-construção do objeto original do desejo (falo-mãe), agora impedido. O significante falo requer significados que mantenham o desejo num plano separado da mãe e assim a estruturação deste sujeito não mais alienado no desejo do outro-mãe. O falo como significante da falta permite permutação com outros objetos... que o signifiquem como Metáfora Paterna; pois é um significante que requer significados. Ao falarmos então das trocas simbólicas do significante falo, estamos nos referindo, portanto, ao Falo Simbólico. Lacan diz no Seminário sobre “O Desejo e sua Interpretação”, em sinopse de J. B. Pontalis:

“O falo tem uma função de equivalência na relação com o objeto: é na proporção de uma certa renúncia do falo que o sujeito entra em posse da pluralidade de objetos que caracteriza o mundo humano” (Pontalis, 1960; pág. 334)

Ao transitar no mundo dos objetos humanos, da cultura (Outro), o sujeito pode re-construir significados para a perda do objeto imaginário do desejo (mãe) em objetos que para ele re-signifiquem seu desejo. O que vale dizer que neste momento ele pode se constituir como sujeito do seu desejo, deixando de se constituir no desejo da mãe-outro, alienado de si mesmo. Desse modo, a constituição do sujeito, enquanto sujeito do seu desejo, tarefa para a vida toda, vai se constituindo nos furos que puderem ser feitos na imagem do outro, nos furos que o simbólico puder fazer no imaginário, no falo imaginário. E, nestes furos, a troca possível é com os objetos-significantes da cultura-conhecimento, dispostos a serem re-construídos pelo sujeito, produzindo um (re)conhecimento como suposto saber por onde o sujeito re-constrói seu desejo.

Quem possibilita construção de (re)conhecimentos é, portanto, a Metáfora Paterna. Cada (re)conhecimento construído é (re)conhecimento que ocupa um lugar na metáfora paterna, na qual o sujeito representa seu desejo. Desse modo, o (re)conhecimento-cultura é re-presentação conceitual e operativa dos significantes que expressam a “realidade” na medida em que o sujeito representa nele seu desejo re-significado na Metáfora Paterna.

O Sujeito Epistêmico está subordinado ao Sujeito do Desejo. E nesse sentido esse percurso não é natural, contínuo e evolutivo, como um “desenvolvimento”. Ele é constituído como discurso nos laços sociais, tendo a castração como mecanismo operador, que introduz a falta, permitindo a montagem de uma armação significante mínima que articula desejo e lei.


4- (H)á falta no conhecer

A re-construção deste conhecimento, é plena de idas e vindas, depende da posição do sujeito diante da castração, que é descontínua e imprevisível. A re-construção (re)conhecimento passa por vicissitudes, rupturas, descontinuidades e desconstruções na medida em que a inscrição no simbólico opera furos na imagem do outro, no imaginário do desejo ou o objeto do desejo idealizado imaginariamente. O vazio deixado pela castração institui o desejo como falta, que é revisitado inúmeras vezes; todas as vezes que o sujeito se (re)encontra com a perda e a (re)conhece. O falo como significante da falta é assim (re)significado muitas vezes entre idas e vindas.

A Metáfora Paterna como suporte do significante paterno (da falta) permite assim construções e reconstruções na aventura do sujeito para representar através dela o seu desejo. Mais uma vez constatamos o rompimento com um processo linear e padronizável de evolução psíquica, ou da inteligência.

O percurso do sujeito constituindo-se como sujeito do desejo na metáfora paterna, movimentando-se pela inscrição incessante do significante da falta que marca o desejo, não inclui completude. É o percurso da vida humana e suas vicissitudes (re)inscrevendo-se no simbólico, (re)conhecendo o simbólico como lugar de inscrição do desejo (inconsciente, recalcado). Desse modo o conhecimento vai sendo re-construído como inscrição no simbólico, furando as idealizações (espelhamentos) do imaginário e permitindo ao sujeito deslizar nos significantes de seu desejo, inscrevendo-os no simbólico da linguagem e nas possibilidades de significação que esta comporta como fertilidade da criação humana; mas convivendo a todo momento com o fantasma do imaginário. Neste percurso o sujeito encontra suporte no simbólico da Metáfora Paterna, aventurando-se nas vicissitudes da descontinuidade e imprevisibilidade em busca de tornar-se sujeito de seu desejo.

Por sua vez, o movimento da inteligência na re-construção do conhecimento está inscrito nas possibilidades marcadas pela posição do sujeito diante da castração. A maneira como o sujeito pode se inscrever no simbólico e significar seu desejo na Metáfora Paterna expressa a modalidade em que ele pode re-construir e (re)conhecer a falta de conhecimento sobre a sexualidade recalcada. Dito de outro modo, a modalidade de acesso do sujeito ao conhecimento-cultura - Outro, implica na forma de (re)conhecimento do Outro como diferente, por meio daquilo que faz falta ao sujeito; ou seja, está ligada à sua posição diante da castração. Conforme sua posição são possíveis construções como a sublimação ou construções como os sintomas. O aprender, enquanto (re)conhecimento da falta, acompanha esta modalidade. Esse percurso é o percurso do significante no qual a aprendizagem está inscrita, articulando o desejo do sujeito a um objeto que por re-apresentar o objeto do desejo (recalcado), pode ser re-significado e re-construído como objeto de (re)conhecimento, inscrevendo no simbólico o sujeito do desejo.

“A complexidade das ações não responde a uma lógica maturativa, mas sim à tentativa da criança de usar, dispor do significante que o Outro exerce”. (Jerusalinky, l989; pág. 33).

Aqui (re)escrevemos a concepção de Piaget por outros registros, e certamente saímos da teoria de Piaget no stritos sensu. Nesse sentido, a inteligência formal opera maior flexibilidade de pensamento pela via conceitual, se movimentando entre sistemas de conceitos, produzindo deslocamentos e transformações intercambiáveis dentro de um processo que não é equilibrante mas sim imprevisível e não padronizável, uma vez que está ancorada no movimento do desejo, ou seja num movimento que não é dela mas de Outro (inconsciente) que a sustenta. Sua operatividade pode ser exercida na proporção em que a função paterna que opera a castração, promove pela via do significante paterno, os furos na imagem do outro, a diferença do outro. O objeto de conhecimento é então escavado e extraído no buraco da ausência que promove o desejo... como objeto causa de desejo e por isso é objeto de (re)conhecimento do desejo do Outro, diferente, e do Outro do desejo (inconsciente).

Dado que o Real, o Imaginário e o Simbólico, lugares por onde desliza o significante, estão entrelaçados, a construção do discurso de um suposto saber, de um sentido, está sempre entrelaçada nestes registros... Quer dizer que os sentidos construídos como discurso são significações dentro das inúmeras possíveis de inscreverem simbolicamente o (re)conhecimento de uma falta no conhecer sobre a sexualidade (recalcada); uma vez que, para construir um sentido, algo do Outro sempre vai faltar...


5- A porta está aberta...

O que isto significa? Significa sobretudo para o “psico-pedagogo”, para os educadores, e para aqueles que trabalham com a produção e transmissão do conhecimento (seja lá como queiram se rotular...), uma abertura de possibilidades para penetrar no movimento do desejo e acompanhar como este sustenta e direciona o movimento da inteligência, bem como as perplexidades que este suscita. Podemos nos utilizar da obra piagetiana naquilo em que ela nos remete ao processo específico de funcionamento da inteligência. No entanto esta posição nos conduz também a não permanecermos nos limites da psicologia cognitivista; nos limites da construção epistêmica do sujeito, uma vez que o sujeito não se explica nem se define restritivamente como sujeito epistemológico, nem pela famosa interação entre cognição e afetividade, que reproduz o dualismo cartesiano entre mente e corpo na modernidade atual.

O sujeito é o sujeito do desejo representado por um significante - ausência de significados; com todas suas dificuldades, complicações... e magníficas e descontínuas criações! E não adiantaria, como historicamente não adiantou, querermos simplificar as confusões ou as “esquisitices” que o sujeito expressa, buscando enquadrá-lo num modelo que o simplifique, como o fizeram os funcionalistas e behavioristas, cuja herança permanece até hoje na razão técnica que em sua produção absorve e pasteuriza as concepções mais sofisticadas sobre o sujeito.

Acredito que seria mais interessante acompanhar o movimento difícil e complicado, caprichoso e imprevisível, do desejo...

No entanto as razões técnicas das ditas metodologias de ensino, podem me perguntar: como se faz isto? Ou qual a metodologia?

Sinto desapontá-los, mas não há...

Acompanhar o desejo é poder escutá-lo... E não há como escutar o desejo do outro sem que possamos escutar o nosso desejo (inconsciente)... Aí é que está a questão!

Escutar o desejo é escutar seu inconsciente nos tropeços e atos falhos, nos variados sentidos das variadas construções... Escuta o desejo quem se importa em acompanhar a mensagem contida no desvio da normatização contida nos “erros”, “problemas de aprendizagem” e “fracassos no aprender”... e só...

Assinalamos um caminho em que buscamos a produção de novos conhecimentos deslocados da razão técnica na qual a psicologia se instalou e estagnou, levando para a estagnação da repetição instrumentalizada a educação e a teoria pedagógica. Nesta busca de novos conhecimentos, utilizamos conceitos de campos específicos. Não se trata de um novo sonho dourado, uma nova idealização ou um novo modismo. E muito menos uma justaposição de campos, ou de uma interdisciplinaridade a gosto dos ecléticos.

Trata-se de utilizar conceitos que permaneceram fechados em seus campos e que podem ser recortados e reconstruídos à medida que forem colocados num outro campo, onde sua força e vitalidade re-estudada e re-pesquisada, pode ser fertilizada produzindo articulações já feitas em seus campos de origem e que podem ser refeitas e revigoradas neste outro campo como uma re-construção, ou re-inscrição, ampliando o próprio repertório conceitual do campo de origem. Nesse processo o eixo é uma epistemologia da descontinuidade, no qual a continuidade de um campo, de uma teoria, é rompida na interlocução com outro campo ou teoria, operando aí o recorte quando ambos campos olham para a mesma temática que os chamou para o diálogo. Esta descontinuidade que a interlocução introduz marca a possibilidade de um percurso antipositivista com grandes chances de romper a razão técnica e seu projeto normatizador.

Aqui o recorte trata da construção da psicopedagogia no seio de sua práxis clínica, que por ser clínica no sentido de acompanhar o percurso particular do desejo, se constitui como escuta do desejo de Saber, de Conhecer (inconsciente) do sujeito, que se expressa em seu estilo de construção de um suposto saber inscrito nas vicissitudes do aprender, portanto não padronizáveis.


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