Textos Inéditos

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Sobre o historial clínico do “Pequeno Hans” (Freud, 1908)
Pontuações sobre a Sexualidade Infantil

MARIA LUIZA ANDREOZZI


Ao ler e reler o historial clínico de Hans, o que se registra para mim num primeiro plano é a cronologia evolutiva com que Hans vive determinadas situações, marcando sua vida através de episódios em que atua e sendo marcado pelo efeito destes episódios. Hans vai tecendo neste percurso uma memória de traços pelos caminhos por onde investe sua pulsão em deslize.

Neste primeiro plano destaco então o que chamo de processo, ou seja, uma seqüência linear de fatos vividos, cujas impressões resultantes inscrevem sua memória. São impressões carregadas de afeto, segundo Freud, onde estão contidas sensações de prazer ou desprazer, atuantes e insistentes, sempre disponíveis para serem re-ativadas.

Neste percurso destacam-se marcas que se estruturam em unidades parcializadas atuando como constantes em todo o processo, através do qual este se mobiliza, produzindo transformações. Ou seja, as marcas ou impressões vividas pela criança desde o inicio de sua vida formam uma estrutura operativa, e dentro dela as possibilidades de transformações. O que eu pretendo dizer é que o processo da sexualidade organiza-se como uma estrutura. Esta, por sua vez, também vai sendo desenhada.

No processo de vivências, à medida que toma deste processo certos elementos e os dispõe na formação da estrutura. Hans então passeia fazendo variadas e diferentes associações, movido pelas situações que encontra à sua volta, ou seja, pelos estímulos (1) que encontra. Uma unidade que vai se estruturando e é central neste processo diz respeito à indagação de Hans, retomada durante todo o processo de formas diferentes: “- Mamãe, você também tem pipi?” Em um momento anterior, no relato de seu pai, quando este desenha uma girafa para Hans, ele diz: “Desenhe também o pipi dela. Ao que o pai responde: “- Desenhe você mesmo”. “Ele começou desenhando um traço, e então acrescentou um pedacinho, observando: - o pipi dela é mais comprido”. Em outro momento, olhando sua irmãzinha tomar banho, diz: “- Ela ganhou um pipi bem pequenininho”.

No entanto, esses estímulos externos não funcionam como tal (externos). Do estímulo, Hans extrai algo que lhe interessa mais, algo que o atrai mais, provocado pela excitação de tais impressões inscritas em sua memória, mesmo que este aspecto não esteja presente objetivamente no estímulo. Se não fosse assim, não haveria razão para Hans destacar em sua irmã algo que não vê nela. Se não está naquilo que vê em sua irmã, onde está? Está em Hans. Presente onde? Em seu corpo: é Hans que tem pipi. Seu pipi é o centro de suas atenções. Por quê? Porque da função orgânica que tem o pipi, ou seja, fazer pipi, emanam sensações de prazer que se destacam e o excitam, excitando sua curiosidade sobre o determinado órgão.

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(1) Segundo Freud “a qualidade do estímulo tem mais a ver com a sensação de prazer do que com a natureza da parte do corpo em questão”. (Freud, 1905) E, na Interpretação dos Sonhos, quando fala da identidade perceptiva, Freud diz que o que constitui um estímulo é aquilo que é atraído pelas marcas mnêmicas, tendo portanto um movimento de dentro para fora e não o inverso, no sentido mais comum do termo estímulo.
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Isto ocorre de tal modo que essa excitação invade sua atenção a ponto de ser, a unidade pipi, o recorte pelo qual ele toma o que vê, como no caso do desenho da girafa, da indagação que faz à mãe etc. Mais ainda, o pipi enquanto órgão do corpo que lhe produz excitações passa a ser diretamente o critério para algumas classificações que faz, como na situação em que diz: “- Um cachorro e um cavalo têm pipi; a mesa e a cadeira, não”. Pipi é o critério para Hans discriminar objetos animados de inanimados.

Neste percurso, o pipi é objeto de curiosidade e investigação sexual, na medida em que é o órgão tocado e manipulado por Hans; senão, de onde viriam as excitações? Por outro lado, as sensações de prazer oriundas do pipi de Hans não ocorreram exclusivamente decorrente de sua manipulação do órgão genital. Seu corpo foi tocado por sua mãe desde seu nascimento. Estes toques produziram sensações que se registraram como impressões carregadas de afeto, retomadas pelo toque de sua mãe ao introduzir Hans nos cuidados da higiene pessoal, deixando-o permanecer no banheiro quando fazia uso deste, exercitando-o como fazer xixi, dando-lhe banho etc. Hans também teve este convívio com seu pai, dentro de certa rotina doméstica, quando este vai ao banheiro com Hans, estando presente no atendimento à sua higiene pessoal, educação etc. Todos estes contatos lhe produziram sensações e curiosidades.

Neste sentido, a unidade “pipi de Hans”, em torno da qual seu processo de transformação evolutiva ocorre, está ligada a “mamãe” e “papai”. A libido de Hans, seu investimento pulsional, está voltada para seu pai e sua mãe, uma vez que estes também o investiram pulsionalmente. Este investimento estende-se para a relação com seus amigos e amigas nas brincadeiras, de modo indiscriminado, revelando o deslize da pulsão investindo em diferentes pessoas e objetos numa linearidade de equivalências. Não existe propriamente uma escolha de objeto dessa pulsão - ela se encontra parcializada, atuando indiscriminadamente. Seu objeto é o próprio corpo, o pipi de Hans que lhe produz excitações. Os objetos e pessoas investidos pulsionalmente por Hans são objetos não separados de seu corpo; ao contrário, são investimentos decorrentes das excitações de seu corpo, onde todos eles formam um corpo só, corpo-pipi único, de onde neste momento lhe surgem as excitações, cuja única meta é a obtenção da satisfação; corpo este no qual Hans investe. Lembrando os Três Ensaios da Sexualidade, encontramos o perverso polimorfo atuando. Qual o protótipo desta atuação de Hans, onde a encontrou. Nos Três Ensaios sobre a Sexualidade, Freud nos coloca:

“Veremos outros expedientes como fonte da sexualidade. O estado de necessitar de repetição da satisfação se revela de duas formas: por uma sensação peculiar de tensão, possuindo antes o caráter de desprazer, e por uma sensação de comichão ou excitação, que é centralmente condicionada e projetada sobre a zona erógena periférica. Podemos então formular um objetivo sexual de outra forma: consiste ele em substituir a sensação projetada de excitação na zona erógena por um estímulo externo que renova aquela sensação, produzindo um sentimento de satisfação. Este estímulo externo via de regra consistirá em alguma espécie de manipulação análoga ao sugar” (Freud, 1905 - grifos meus)

Freud remete-se aí à A Interpretação dos Sonhos, cuja passagem vale a pena citar:

“A excitação imposta pela necessidade interior buscará uma saída na motilidade que pode designar-se ‘alteração interna’ ou expressão emocional. A criança faminta chorará ou ficará imóvel. Mas a situação se manterá imutável, pois a excitação que parte da necessidade interna corresponde a uma força que golpeia de maneira momentânea, ou que atua continuadamente. Só pode sobreviver uma mudança quando por algum caminho se faz a experiência da vivência da satisfação que cancela o estímulo externo. Um componente essencial desta vivência é a aparição de uma certa percepção (a nutrição, por exemplo), cuja imagem mnêmica aparece dali por diante, associada ao traço que deixou na memória a excitação produzida pela necessidade. A próxima vez que esta última aparecer, devido a um enlace assim estabelecido, suscitará um impulso psíquico que se dirigirá a investir de novo a imagem mnêmica daquela percepção e produzirá outra vez a mesma percepção que restabelece a situação da satisfação primeira. Um impulso desta índole é o que denominamos desejo; a reaparição da percepção é o cumprimento do desejo, e o caminho mais curto para este é o que vai desde a excitação produzida pela necessidade até o investimento pleno da percepção”. (Freud, 1900 - grifos meus)

A sexualidade segue aqui um caminho sem mediações em busca da satisfação. Os objetos tocados, as pessoas encontradas, se alternam numa linearidade imediata cujo único critério é a obtenção de satisfação como complementação de uma totalidade narcísica sem falta. O pensamento se produz dando continuidade a esta busca de satisfação imediata das excitações que ocorrem no órgão sexual da criança.

As crianças também serão mobilizadas a elaborar teorias sexuais infantis ao se encontrarem com a ausência do pênis na mãe. Nessas teorias são criadas explicações – um discurso –, objetos a suprir (representar) a ausência do pênis na mãe, de modo a apagar a angústia da diferença sexual e as interrogações oriundas desta diferença. O pensado aqui construído representa uma extensão do que acontece em sua vivência corporal diante da diferença sexual como perda narcísica a ser evitada.

“A primeira dessas teorias deriva do desconhecimento das diferenças entre os sexos, como uma característica infantil. Consiste em atribuir a todos, inclusive às mulheres, a posse de um pênis, tal como o menino sabe a partir de seu próprio corpo”. (Freud, 1908a).

Esta explicação satisfaz a criança, porque decorre de sua própria vivência corporal. Este tipo de pensamento aponta para a “identidade perceptiva, ou seja, repetir aquela percepção que está ligada com a satisfação da necessidade” (Freud, 1900). Desse modo, Hans não via que sua irmã não tinha pipi e separava objetos animados de inanimados pelo critério de ter ou não ter pipi.

Assim, vários episódios deste primeiro momento do processo em que ocorre a sexualidade são possíveis e se organizam em torno de uma unidade constante e operadora: a universalidade do falo. Para tanto não podemos entender este elemento organizador da sexualidade humana como sendo simplesmente o órgão sexual masculino, mas como sendo a “representação construída com base nessa parte anatômica do corpo do homem.” (Nasio, 1989). Podemos chamar a universalidade do falo como sendo a estrutura sobre a qual o processo da sexualidade vai sendo tecido, e aí numa cronologia evolutiva. Assim, acompanhando o processo – ou seja, os fatos, episódios, fragmentos da vida de Hans –, chegamos à estrutura. A estrutura da sexualidade, assim, contém o processo da sexualidade. Através da universalidade do falo o processo da sexualidade se organiza. A partir desta unidade organizadora é que a sexualidade como processo segue seu curso. Dentro da estrutura são possíveis variadas combinações, mas nenhuma delas arbitrária. Todas as combinações possíveis na estrutura se articulam em torno da universalidade do falo. É de Freud que parte esta elaboração:

“Mais tarde (1923) prestei atenção ao fato de que o período de desenvolvimento sexual pelo qual nosso pequeno paciente estava passando é universalmente caracterizado pelo conhecimento de apenas uma espécie de órgão genital, a saber, o masculino. Ao contrário do período posterior de maturidade, esse período é marcado, não por uma primazia genital, mas por uma primazia do falo”. (Freud, 1908 - em nota acrescentada em 1923).


Escutando o processo...

Mas, se o desejo que dirige a busca humana é o de re-viver a experiência original de satisfação, seu percurso não é simples. Hans procura se manter nesta busca, afastando-se de toda evidência que pode lhe mostrar caminhos outros que não sejam o investimento libidinal circunscrito dentro do círculo de relações em que se completa: Hans, sua mãe e seu pai. Assim, ao ser surpreendido pela mãe quando tocava em seu pênis, afasta-se do que sua mãe fala. Sua mãe lhe diz:

“- Se fizer isto de novo vou chamar o Dr. A. para cortar seu pipi. Aí com que você vai fazer pipi?
- Com meu traseiro.”

Segundo o relato esta resposta não provocou nenhum sentimento de culpa. Mas, através dela, de qualquer forma, Hans toma contato com o “complexo de castração”.

Com o nascimento de sua irmã, Hanna, Hans é deslocado do lugar que vinha ocupando e passa a exercer várias tentativas de retornar a ele. Manifesta hostilidade e ciúmes em relação a Hanna, pois esta ocupa agora a atenção de seus pais, especificamente de sua mãe, da qual Hans se vê afastado. Seus pais agora dividem o amor, o investimento libidinal dedicado antes exclusivamente a ele, com Hanna. Isto perturba Hans, que quer manter sua exclusividade. Hans então busca maior aproximação em relação a sua mãe. Quer dormir na cama com seus pais, e de preferência com sua mãe, procurando afastar o pai deste convívio. Chega a hostilizar seu pai, para em seguida procurar reparar este ato. Busca seduzir sua mãe quando esta lhe dá banho e passa a mão em volta de seu pênis, tomando cuidado para não tocá-lo, dizendo-lhe:

“- Por que é que você não põe o dedo aí?
- Porque seria porcaria.
- Que é isso? Porcaria? Por quê?
- Porque não é correto.
- (rindo) Mas é muito divertido.”

Manifesta ciúmes e hostilidade em relação à Hanna, pois esta ocupa agora maior atenção de seus pais por ser um bebê.

Nesse sentido Freud comenta:

“O menino tinha descoberto o caminho para o amor objetal da maneira usual, pelo cuidado que tinha recebido quando bebê; e um novo prazer tinha, agora, se tornado mais importante para ele - o de dormir ao lado da mãe” Mais para frente ele acrescenta que: “Hans era realmente um pequeno Édipo que queria ter seu pai ‘fora do caminho’, queria livrar-se dele, para que pudesse ficar sozinho com sua mãe e dormir com ela”. (Freud, 1908).

Em seguida Freud remete-se à Interpretação dos Sonhos, cuja passagem vale a pena retomar:

“Talvez nós nos tenhamos deparado em dirigir nosso primeiro impulso sexual para a mãe e o primeiro ódio e desejo violento sobre o pai; nossos sonhos nos convencem disto. O rei Édipo que matou seu pai Laio e desposou sua mãe Jocasta não é senão o cumprimento de desejo de nossa infância... Retrocedemos espantados frente à pessoa em que esse desejo primordial da infância se cumpriu, e o fazemos com toda repressão que esses desejos desde então em nossa interioridade. Ao passo que o poeta naquela investigação vai trazendo à luz a culpa de Édipo, vai nos forçando a conhecer nossa própria interioridade, onde aqueles impulsos, mesmo sufocados, seguem existindo... Como Édipo, vivemos na ignorância desses desejos que ofendem a moral, desses desejos que a natureza forçou em nós, e que por detrás desta revelação bem quereríamos todos afastar a vista das cenas de nossa infância.” (Freud, 1900).

Hans manifesta seu amor por sua mãe, ou seja, uma escolha de objeto incestuosa, e hostilidade a seu pai. Ao mesmo tempo, tem medo do pai, expresso na representação fóbica de medo de cavalos. De modo indireto chega a desejar a morte do pai.
Esta corrente de sentimentos de Hans se deflagra com maior intensidade com o nascimento de sua irmã. Nesse momento ele se sente ameaçado da perda do amor dos pais. A isto se liga a intervenção de seus pais para que não tocasse no pipi, algo em torno do qual existe uma proibição. Ao mesmo tempo, a aproximação exclusiva que ele busca em relação à mãe encontra-se com muitos obstáculos, na medida em que seu pai intervém, por exemplo, mandando-o de volta para sua cama, quando este quer dormir com sua mãe.

Nesta confluência, a excitação sentida por Hans não obtém caminhos para ser satisfeita como fazia até então, vindo a aumentar e a lhe provocar desprazer. Hans constrói então a fobia, jogando nela a angústia de castração. Hans neste momento está atravessado pela castração, mediante a proibição do pai através de sua presença e seu investimento libidinal em relação à mãe, e desta em relação ao pai. Diante da castração, surge angústia em Hans, pela ameaça da perda de seu pipi (segundo a fala da mãe), ameaça de perda narcísica do investimento pulsional exclusivo de seus pais em relação a ele, especificamente de sua mãe. Seu investimento pulsional, antes gratificado pela satisfação, transforma-se em angústia diante da castração. Agora uma grande carga de excitações, sem caminhos para descarga, expressa ambivalência de sentimentos, exemplificada no amor e ódio que sente pelo pai. A fobia surge como uma forma de lidar com a angústia de castração. É nela que Hans representa o conflito de seus impulsos. Nesse momento a fobia mediatiza o caminho que vai da sua excitação corporal, pulsional, para a satisfação, bloqueando-a, retendo-a. A satisfação não obtida e ameaçada se fixa na fobia, paralisando Hans em alguns momentos, afastando-o de sua relação com o objeto da pulsão, a mãe; e em outros momentos aproximando-o dela e aí gerando angústia. A ameaça de castração feita a ele tem seu efeito na produção do sintoma fóbico.

O desejo em sua busca de satisfação que repita a satisfação original obtida (mãe), de modo imediato, direto, não tem mais seu caminho aberto. Sobre ele se instala o recalque, pois o pai impede o acesso de Hans à mãe. Este interdita a relação incestuosa, erguendo uma barreira que a proíbe. As excitações reprimidas alojam-se no inconsciente. O caminho direto do desejo que busca a satisfação original está interditado. Tudo o que dava prazer a Hans muda depois do recalque.

Por outro lado, se a via direta de acesso à satisfação original está interditada, é possível este acesso através de mediações, na representação-palavra. Por esta via a pulsão pode produzir representações que signifiquem a perda da castração, que ocupem este lugar que ficou vazio. Nesse sentido, a perda que ocorre na castração pode ser preenchida por variadas e diferentes construções, distantes do imediato da satisfação original. No entanto, o modelo desta busca pulsional é o modelo de satisfação original perdida que produz o desejo. Desse modo, o investimento pulsional toma uma direção para o futuro, sustentando-se num movimento regressivo, aquele que busca representar a satisfação original, perdida.

“A completa atividade do pensamento que procura desde a imagem mnêmica até o estabelecimento da identidade perceptiva por obra do mundo exterior não é outra coisa senão um rodeio para o cumprimento do desejo, rodeio que a experiência fez necessário” (Freud, 1900).

As restrições quanto à satisfação imediata da pulsão sexual fazem com que os impulsos libidinais de Hans, agora inconscientes, continuem investindo. Porém, neste momento, a “escolha” de objeto está aparentemente distante do objeto de satisfação original, incestuosa. No entanto, como diz Freud, “Todo e qualquer objeto se baseia, embora menos nitidamente, no protótipo infantil de amor (sexual).” (Freud, 1905).

Se por um lado a unidade organizadora da estrutura da sexualidade é a universalidade do falo, e em torno dela se processam as marchas e contramarchas do processo da sexualidade, a castração, incidindo sobre a universalidade do falo, e com ela o recalque, movimentam a estrutura da sexualidade, operando nela novas combinações. Estas novas combinações derivadas da universalidade do falo incidem por sua vez sobre a perda do falo, a castração, possibilitando a reconstrução desta perda. Por sua vez esta re-construção implica numa busca de novas modalidades de funcionamento psíquico. Uma re-construção não é uma obra original, mas é feita à partir do modelo (original). Nesse sentido a sexualidade se organiza nesta reconstrução. Ou seja, a reconstrução parte de uma lei que diferencia a existência do falo da não existência de falo; ou seja, da aceitação da proibição paterna, ou não aceitação. O psiquismo se organiza, então, a partir desta lei, a lei de proibição do incesto, operando o recalque ou não operando o recalque. Constitui diferentes posições possíveis de serem assumidas diante do recalque, uma, como modalidade de funcionamento psíquico, ou de sexualidade. É claro que entre as alternativas aparentemente exclusivas do “Ou” perpassam os impulsos do desejo que não pára de atuar em busca da satisfação original perdida, criando composições e resoluções diante da proibição do incesto das mais variadas. De toda forma, acompanhando o processo que a sexualidade percorre e seu encontro com a castração, a universalidade do falo, como unidade organizadora da estrutura da sexualidade (do psiquismo), é retomada e revestida com os conteúdos do processo da castração pela proibição do incesto. A estrutura desse modo absorve o processo que nela está contido e o conduz a uma outra unidade organizadora da própria estrutura da sexualidade: a castração. Outra unidade, cuja existência está presa à primeira unidade, ou seja, a universalidade do falo, senão não teríamos como falar de castração. Através dela, então, o falo pode ser representado por meio de significações de sua perda. Assim, universalidade do falo e castração, se compõem como dois fonemas diferenciados por suas posições, possibilitando novas construções a partir deles. Dito de outro modo, a sexualidade e o psiquismo se organizam segundo um estilo, que é efeito da posição do sujeito diante da castração. Em outras palavras, estamos falando da ressignificação da perda ou, dito de outro modo, da palavra que enquanto tal constrói aquilo que não está mais presente, ou seja, a perda.

Hans se encontra com a castração numa outra situação, quando seu pai lhe fala que as mulheres não tem pipi. E que, portanto, sua mãe não tem pipi, nem sua irmã. O que Hans faz disto, ou como se posiciona? A princípio se defende, não levando em conta. Seguindo o processo, notamos que as vicissitudes de seus conflitos o levam a construir a fobia.

No entanto, o que o pai de Hans lhe oferece como informação, através de sua palavra - discurso -, possibilita a Hans estabelecer uma diferença entre as pessoas: as que têm pipi das que não têm pipi. O que vai permitir mais adiante que Hans represente a ausência do falo. Portanto, nem todas as pessoas com que Hans convive são iguais a ele; podem ser diferentes. Essa diferença existe em relação a seu pai, a sua mãe e ele. Fortificando esse critério de diferenciação está a proibição do incesto feita pelo seu pai, que estabelece para Hans um lugar. Isto o diferencia também: é filho de seu pai. Sua mãe pertence ao seu pai e não a ele. A presença do pai exercida através de sua palavra (do pai) ordena o lugar da mãe e do filho. Hans não pode ter a mãe como objeto de seu prazer.

Diante da lei são estabelecidos limites, limites do corpo, limites para o caminho que visa a satisfação. Algo diante da lei pode, de agora em diante, começar a ser construído.

Ainda, mais uma vez, acompanhando o movimento de Hans...

Surge então, a construção da fantasia da girafa, (Freud, 1908, págs. 47, 48). Passado este momento, no dia seguinte, seu pai, despedindo-se de sua mãe para levá-lo a um passeio, fala, dirigindo-se à mãe de Hans:

“- Até logo grande girafa?
Hans: - Por que grande girafa?
Pai - A mamãe é a girafa grande.
Hans - Ah! É isso mesmo! E Hanna a girafa amarrotada, não é?” (Freud, 1908)


A Reconstrução do processo na estrutura

A movimentação de Hans caminha ocupando o espaço vazio da angústia para fazer construções (fantasias) que se diferenciam das anteriores. Nelas, agora, Hans joga com sua angústia representando-a, por exemplo, nas girafas. Dirige para as girafas o investimento de sua pulsão libidinal: o amor à mãe, girafa grande, e a hostilidade para com a irmã, girafa amarrotada; obtendo através desta construção (simbólica) sua satisfação. Há uma interrupção, um corte no alinhamento direto, imediato que ligava a excitação corporal de Hans e a busca de satisfação. Este corte circunscreve um limite cujo espaço, num primeiro momento, fica vazio e produz angústia, (pela perda, falta - castração). Neste momento o vazio pode ser ocupado pela representação simbólica da girafa, representação esta que só pode se compor como tal pela linguagem: Hans fala o que construiu. Seu pai fala comparando sua mãe à girafa grande. Hans fala que a girafa amarrotada é sua irmã. Assim, a cena construída adquire significado.

Por sua vez, intervenção de Freud conversando com Hans, enquanto um terceiro, oferece tanto ao pai quanto ao filho a possibilidade de manifestarem seus sentimentos. O que fez Freud? Ele recobriu o drama vivido por Hans com palavras que o representavam, nomeando o vazio da angústia. Abriu para Hans a possibilidade para que ele fizesse o mesmo. Para tanto, Freud sustentou seu discurso para além da existência de Hans, para algo que o antecedia e o acolhia em seu drama, no seu drama. Em outras palavras, situou Hans numa filiação que o antecedia. Não é à toa que Hans achava que “o professor falava com Deus”. Alguém que podia sustentar a todos, um pai que garantia a todos um lugar. Freud assim possibilitou que Hans fosse acolhido e sustentado para além do pai e certificar-se de que ocupava um lugar. Freud dessa forma conferia autoridade ao discurso do pai de Hans e o autorizava como pai, ocupando um lugar de pai, do pai; remetido ao pai do pai... abrindo caminho para a identificação de Hans com o pai. Sobre esta passagem Freud comenta que a partir de então “o pequeno paciente convocou coragem para descrever os detalhes de sua fobia e começou a tomar parte ativa na condução da análise.” (Freud, 1908 - grifos meus)

Voltando ao episódio da fantasia da girafa, podemos notar que ocorre aí uma condensação: construção da fantasia da girafa. Hans investe sua pulsão agora nesta construção, deslocando-a da mãe, da irmã, em função do recalque. O desejo de obter de novo a satisfação original diretamente, tendo a mãe como objeto de satisfação (objeto incestuoso), é deslocado para outros objetos, objetos de fora da relação familiar. Esta é a mediação que viabiliza a possibilidade da realização do desejo originário de impossível acesso. A construção que se segue acompanha este movimento:

“Eu pensei uma coisa hoje. O bombeiro veio; primeiro retirou o meu traseiro com um par de pinças, e depois me deu outro, e depois fez o mesmo com meu pipi.” (Freud, 1908).

No deslize deste deslocamento, outros se produzirão, possibilitando novas construções, como podemos ter notícia acompanhando o movimento de Hans, possíveis de significação, ou seja, de uma mediação onde a perda possa ser representada por diferentes categorias, e não mais coladas ao imediato das excitações corporais. Assim, o pensamento e o funcionamento psíquico organizam-se sob novas categorias, descoladas da natureza, deixando de ser o reflexo. Poderíamos chamar esta qualidade do pensamento de um certo pensamento abstrato, com maior possibilidade de troca representativa, um pouco mais afastado do pensamento animista ou mágico; o que equivaleria a dizer que se introduz então a possibilidade da construção do conhecimento socializado, mediado pela lei que organiza os laços sociais.

No episódio da fantasia da girafa Hans diz, num determinado momento:

“- Não, eu não sonhei. Eu pensei. Pensei em tudo. Eu tinha acordado antes.” (Freud, 1908 - grifos meus)

Extraímos então a construção de que a sexualidade, tendo como estrutura organizadora a universalidade do falo, atravessada pela castração no drama edipiano, constitui o psiquismo e o conhecimento.

A esse respeito Freud comenta que o percurso da curiosidade sexual da criança segue seu processo,

“mas quando parece bem encaminhado para descobrir a existência da vagina e inferir que a penetração do pênis paterno na mãe foi o ato que gerou o bebê no corpo desta - nesse momento crítico, a criança perplexa e impotente é obrigada a interromper sua investigação. O obstáculo que impede que ela descubra a existência de uma cavidade que acolhe o pênis é sua própria teoria de que a mãe possui um pênis, como um homem. Não é difícil concluir que a maioria de seus esforços intelectuais o faz rejeitá-los e esquecê-los. Essas hesitações e dúvidas tornam-se , entretanto, o protótipo de todo seu trabalho intelectual posterior aplicado à solução de problemas, tendo como esse primeiro fracasso um efeito cerceante sobre o futuro da criança.” (Freud, 1908a - grifos meus)

Uma vez que a pulsão não cessa de atuar e o desejo não pára de desejar, outro, que substitua a mãe como objeto de satisfação, as novas construções são inevitáveis. Nestas substituições, no entanto, o protótipo de satisfação original obtido em relação à mãe estará sempre presente e de modo fragmentado nas lembranças dos adultos, operando diferentes e variadas construções. Surgem então as diferentes combinações possíveis para ocupar o lugar do vazio. Entre elas, ao fim e ao cabo, a identificação de Hans com seu pai, tê-lo como modelo. Modelo que, ao ir se construindo, dirige o investimento pulsional de Hans, desinvestindo-o de sua mãe. Porém, à distância, seu investimento pulsional está voltado para ela. Ou seja, Hans busca fazer aquilo que seu pai faz com sua mãe. Em outras palavras, ocupar o lugar do seu pai, como aparece em suas últimas construções - a representação simbólica da morte do pai.

Acompanhando Hans, destaca-se nesse sentido um episódio de grande significação quando Hans conversa com seu pai sobre quem eram seus filhos, elaborando uma nova construção:

Pai: “- Você sempre imaginou que Berta e Olga e o resto eram seus filhos?
- Sim. Franz e Fritzl, Paul também (seus companheiros em Lainz), e Lodi. Este é um nome de menina inventado, o do seu filho favorito, de quem fala com mais freqüência - posso enfatizar aqui o fato de que a figura de Lodi não é uma invenção dos últimos dias, mas existia antes da data em que ele recebeu a última parcela de esclarecimento.
- Quem é Lodi? Ela está em Gmunden?
- Não.
- Existe uma Lodi?
- Existe, eu a conheço.
- Quem é ela, então?
- Eu a tive aqui.
- Como é que ela é?
- Como ela é? Olhos pretos... eu a encontrei uma vez com Mariedl, quando eu estava indo para a cidade.
Quando eu entrei no assunto isto parecia uma invenção
- Então você pensou que era a mamãe deles?
- E eu era mesmo a mamãe deles.
- O que você fazia com seus filhos?
- Eu os botava para dormir comigo, as meninas e os meninos.” (Freud, 1908 - grifos meus)

E Freud explica,

“A pulsão sexual fora até então auto-erótica; encontra agora um objeto sexual. Até o momento atuava partido de zonas erógenas singulares que, independentemente umas das outras buscavam um certo prazer em qualidade de uma única meta sexual. Agora é dada uma nova meta sexual; para alcançá-la, todas as pulsões parciais cooperam, de modo que as zonas erógenas se subordinam ao primado do genital.” (Freud,1905)

Em outra passagem:

“Há, portanto, bons motivos para a criança que suga o seio materno se tenha tornado o protótipo de toda relação de amor. O encontro de um objeto é, na realidade, um reencontro dele.” (Freud, 1905 - grifos meus).

Estamos falando então de re-significação. Se é re-significação, re-encontro, re-leitura... a estrutura da organização sexual envolve uma temporalidade outra que não seja cronológica como o processo. Freud, quando fala das lembranças encobridoras, de après-coup, nos remete a isto. E na Interpretação do Sonhos esta temporalidade regressiva-progressiva fica explicitada.

No processo, aparentemente, podemos acompanhar uma linearidade causal. Mas como a estrutura contém o processo, esta linearidade é cortada ao reorganizar os fragmentos das lembranças infantis (sexuais), re-transcrevendo-as no presente, numa nova construção - ou re-significação -, fazendo a lembrança re-aparecer sob uma nova forma. Nesse sentido não se pode procurar uma verdade oficial nos fatos do processo, pois este segue seu curso através de fragmentos da pulsão sexual, inscrevendo e escrevendo impressões variadas, contendo potencialmente variadas significações. Qual delas é a verdadeira?! O acesso a esta verdade é inacessível, uma vez que a pulsão que é plástica e não pára de atuar e provocar novas e diferentes associações entre os traços mnêmicos carregados de afeto. Registros do passado... Estes significantes articulam construções, novas construções, outras construções... exatamente porque estas são possíveis progressivamente, caminhando de maneira regressiva... O processo segue seu curso para frente, mas como a estrutura o contém, seu movimento progressivo caminha acompanhando a direção do seu movimento regressivo, contido e operante na estrutura. Em outras palavras, a história do sujeito segue seu curso cronológico no presente e para o futuro, caminhando para trás, dirigida para a realização do desejo e as vicissitudes encontradas neste percurso através do drama da vivência da castração.

Assim, tanto na vida de Hans, como na de qualquer homem, uma série de acontecimentos não significam a princípio nada; meras (?!) impressões como: * ^ * # “ | | \ @; significantes... O que as diferencia? Como se organizam? Como podemos ler isto? Como podemos conhecer estas marcas? Como podemos nos relacionar com estas marcas? Somente a partir de algum critério, de alguma lei, poderão se diferenciar, ter um lugar e significar algo. E a lei que organiza a estrutura da sexualidade, fazendo o processo deslizar partindo da a universalidade do falo e atravessar a castração, é a lei de proibição do incesto, ao estabelecer um diferencial mediador (entre o pênis como órgão genital e sua representação psíquica como falo), possibilitando assim a representação do falo em sua ausência (castração).

Setembro, 1995


Bibliografia:

FREUD, SIGMUND. Obras Completas, Rio de Janeiro, Editora Imago, 1969
- Três Ensaios sobre a Sexualidade – 1905
- Sobre as Teoria Sexuais das Crianças – 1906
- Análise de uma Fobia em um menino de cinco anos – 1909


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