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Pontuações... Édipo - Hamlet e a Psicanálise

MARIA LUIZA ANDREOZZI


Ao ler o drama de Hamlet interessou-me acompanhar o movimento do desejo aprisionado de Hamlet. Existe um movimento de Hamlet, um vai e vem percorrendo círculos, sem conseguir romper este círculo. O desejo de Hamlet liberta-se somente com sua morte, com o sacrifício supremo. Com a volta ao estado inorgânico.

O drama de Hamlet começa quando tem notícias do aparecimento do espectro – fantasma – de seu pai morto, por meio de Horácio, seu amigo; alguém em quem ele deposita confiança, alguém com quem ele se encontra numa relação transferencial. A partir deste momento, Hamlet se mobiliza em busca de um encontro com o espectro do pai, na esperança que este lhe fale, acompanhando-o, para que o fantasma do pai lhe fale, indagando-o para que este lhe fale. O espectro fala a Hamlet de uma profunda humilhação a que fora submetido, contando-lhe a situação desonrosa em que morreu, a condição pouco nobre na qual foi traído pelo irmão. Claudio tirou-lhe a vida, o poder, e ainda tomou sua mulher, casando-se com ela (condição esta para se tornar rei, consentida por Gertrudes - a rainha que ficou viúva).
O pai - espectro, fantasma - ordena a Hamlet que vingue sua morte. Convoca Hamlet a uma ação em seu nome - em nome do pai...

Deste momento em diante Hamlet intensifica seu tormento, já iniciado com a morte do pai.

É interessante observar que a via de acesso de Claudio ao poder se dá através de Gertrudes - mulher - mãe de Hamlet, cunhada de Claudio. Casando-se com a rainha é que Claudio tornou-se rei.


Acredito que o início deste drama é intenso e determinante para acompanharmos o movimento do desejo de Hamlet. Esta abertura contém os ingredientes básicos sobre a posição de Hamlet diante do seu desejo.

O fantasma do pai que aparece a Hamlet expressa alguém que nem está morto, nem está vivo. O fantasma aparece como algo (?), alguém (?) - uma presença-ausente, portanto como representação - e fala ao filho, dando-lhe uma ordem - ordem de vingança! Vingar sua morte! Como? Por outra morte. Hamlet deve matar Claudio. Hamlet tem esta dívida em relação ao pai.

O tormento de Hamlet instaura-se então com toda intensidade, à medida que se constitui nele um conflito: o conflito do saber - sobre as condições da morte do pai reveladas pelo espectro dele; o conflito de saber sobre sua filiação e a ordenação a que esta implica. Saber este que lhe ordena vingança ou, em outros termos: o fantasma do pai coloca ao filho Hamlet uma ordem que o posiciona junto de si, junto ao pai, a seu favor - defendendo uma causa do pai, ordenando-o junto ao pai.

Será este o desejo de Hamlet?... Se fosse, Hamlet não se atormentaria. Bastaria executar a ordem do pai. No entanto, Hamlet hesita diante desta ordem, prorroga sua execução. Cabe a pergunta: por que Hamlet se atormenta, ou qual o desejo de Hamlet?

O desejo de Hamlet está voltado para a mãe, nada mais óbvio! Encontramos aqui a situação edípica em sua universalidade.

Como? Pela via da representação inconsciente fantasmática. Édipo, por não saber sobre sua filiação, comete o crime do incesto, pois embora imerso num social, portanto onde existia uma lei que proibia o incesto, não tem acesso a esta lei de modo a se posicionar como ser desejante. Édipo vive a pulsão sem retoques, sem recortes; não articula regras para conjugar. Ele segue o fluir das pulsões e suas vicissitudes. Não se encontra diante de uma situação em que possa acontecer a decisão e a escolha, pois escorrega no deslize das pulsões. Não encontro na tragédia de Édipo nenhum momento em que Édipo faça qualquer escolha.

Édipo vive sem discriminar, sem demarcar um tempo, o antes e o depois; vive num contínuo, como UM sem outro. É só UM que decifra o enigma da esfinge. Édipo não ascende ao lugar de rei; recebe este lugar como prêmio, por casualidade, uma das vicissitudes da pulsão. Via de regra, na Antigüidade, a ascensão ao lugar de rei se dava por descendência, por filiação. E é isto que Édipo não tem, porque não sabe quem é seu pai. Assim recebe Jocasta, a rainha cujo rei morreu, como esposa. Recebe a rainha como esposa, tornando-se rei.

De novo encontramos na mulher o acesso ao poder.
Jocasta consentiu ser esposa de Édipo?

Sem recortes, sem recalque, sem inconsciente, e enquanto inconsciente, Édipo não tem acesso à lei de proibição do incesto; pois sem filiação não tem referência que mediatize discriminações, regras que articulem o seu conjugar e que portanto instaurem nele a lei que proíbe o incesto, isto é, a instância humana da ética.

Édipo comete o crime do incesto e o vive no fluir das vicissitudes da pulsão. Édipo assim não tem desejo, pois sem mediação (filiação) entre a sua natureza e a lei contra o incesto, não se cria espaço, hiato, vazio, para poder constituir seu desejo.
Conseqüentemente, não concebe objeto de desejo e em troca não tem fantasmas, pois sem desejo circunscrito dentro dos limites, estes não lhe aparecem escapando destes limites. Édipo vive num contínuo UM.

Através da palavra de Tirésias, palavra esta constituída de um saber, Édipo tem acesso sobre sua filiação. Aí é que entra em conflito...


O que retorna na representação de Hamlet?

Retorna a representação da vivência edipiana anterior ao saber (infância). Traumática! Traumática em Hamlet, conflituosa porque confirma para Hamlet um saber sobre a filiação que estabelece um corte em sua vivência posicionada junto à mãe, alinhada e aninhada no desejo desta. Desejo fantasmático porque Hamlet sabia de sua filiação. A
filiação paterna traz limites, um corte ao contínuo em que Hamlet poderia viver, como viveu Édipo. Isto os diferencia.

O fantasma do pai surge cortando este contínuo, repondo, impedindo seu desejo em relação à mãe, reposto e revivido com a morte do pai. A filiação paterna atormenta porque introduz a diferença, significante primordial, com o qual Hamlet entra em conflito diante de seu desejo. Sem a mediação da diferença, Hamlet não poderia entrar em conflito diante de seu desejo (inconsciente). É na oposição entre no mínimo dois que pode haver reconhecimento do um. Situo o drama conflitual de Hamlet exatamente nesta oposição entre dois trazida pela diferença do terceiro que o corte da filiação introduz.

Diante disto, Hamlet se faz de louco! Ofende Ofélia, que incorpora a diferença.

A impossibilidade de Hamlet incorporar a diferença aprisiona seu desejo e seu objeto de desejo. Hamlet é colocado a escolher, decidir, embora não consiga. Oscila nas vicissitudes do desejo, isto é, diante das possibilidades de se constituir sujeito do desejo, constituindo o objeto do seu desejo - Ofélia... Vive envolto, tomado pelo fantasma, representação imaginária de seu desejo. Não toma a palavra do pai (o corte da filiação paterna, significante primordial) para constituir sua palavra, articulando outros significantes a partir deste.

Na oscilação das vicissitudes de seu desejo que não incorpora a diferença, mata Polonio, pai de Ofélia. Diante da morte do pai, Ofélia, que Hamlet amava, enlouquece e se suicida.

O que constitui Ofélia neste drama, ou qual o desejo de Ofélia, uma vez que enlouquece e se suicida?


Ainda em seu percurso, Hamlet toma Laertes por rival, exatamente quando esta lhe aponta a diferença - seu clamor pela morte de Ofélia; em outra palavras, quando Laertes se identifica com Oféla. Aceita o duelo proposto por Claudio... Caminhos e descaminhos do percurso do desejo, equívocos que o levam a perder Ofélia, seu objeto de desejo, porque não pode sustentá-lo como escolha, uma vez que a diferença o atormenta.

Assim o drama de Hamlet é o drama de saber sobre a diferença. Diferença que o atormenta. SER UM OU NÃO SER UM - tradução psicanalítica de suas palavras: TO BE OR NOT TO BE... IS THE QUESTION!


A morte do pai de Hamlet o aproxima da mãe. Daí sua revolta contra a união de Claudio e Gertrudes. Claudio não só usurpou seu lugar, mas impediu-lhe a aproximação da mãe. No entanto, sua revolta se transforma em tormento e conflito diante da ordem do fantasma do pai. Esta reaviva a repressão imposta por este quando vivo, por sua presença ao lado da mãe que lhe impedia o acesso a ela. Mas de onde vem a ordem dirigida a matar Claudio, dado que o pai não existe mais, morreu? Da presença-ausência do pai, ou do fantasma do pai que se aloca junto de sua mãe, onde está seu desejo; no imaginário - oscilando em busca de um sentido, de um ato que possa alocá-lo junto ao pai, ou seja, no símbólico. Hamlet planeja matar Claudio, mas se dispersa nesta meta, pois seu desejo pela mãe também almeja matar Claudio, algo impedido pelo fantasma do pai. Por que mataria Claudio? Seguindo a ordem do fantasma do pai, alinhando-se ao lado deste, ou para aproximar-se da mãe?... Ele oscila. Assim prorroga o encontro com o seu desejo, pois está perdido no desejo do outro (mãe) - do Outro. Seu desejo lhe escapa, aliena-se dele, está no outro (mãe), reprimido e preso no saber do fantasma do pai. Executar uma segunda morte, ou seja, matar o tio usurpador, implicaria em matar o fantasma, a ordem do fantasma que se interpõe entre ele e a mãe. No entanto, ele mata Polonio, cuja morte enlouquece Ofélia, a quem amava, que se mata. Perde em Ofélia seu objeto de desejo, exatamente na medida em que não pode sustentá-lo como escolha, não se libertando do fantasma. E não se liberta do fantasma porque deseja a mãe, motivo pelo qual o fantasma lhe aparece.

O drama de Hamlet se passa através do fantasma pai e de seu saber revelado ao filho. Édipo realiza o incesto, pois não sabe sobre o pai. Vive na ignorância de um saber sobre o pai, numa relação imediata, natural, com seu desejo. Portanto, não sabe dele, embora outrora tivesse fugido da casa paterna para se afastar do crime do incesto. Não sabendo do seu desejo na medida em que ele é realizado, não sofre o tormento do fantasma - não é incomodado pelo saber sobre seu pai. Seu desejo não oscila, é vivido num contínuo. Assim não constitui objeto de desejo e nem se constitui sujeito do desejo. Édipo vive o desejo, sem demarcação de um tempo, o que o torna um mito universal, e possibilita talvez a concepção de um contínuo (sem cortes) do prazer...

Mas o saber lhe causa horror e a tragédia. Com ela, o trauma: cega-se, autopunindo-se numa compulsão de culpa, para não ver a cena que o saber instaura.


e Freud...

Chama-me a atenção quando Freud fez o deslocamento da teoria do trauma para a teoria da sedução, chamando para este movimento Sófocles com a tragédia grega de Édipo Rei, atribuindo a esta a característica de mito universal, e em seguida Sheakspeare, com seu Hamlet.

Quando Freud volta no tempo, recuperando a tragédia grega de Édipo e se apropriando dela, o faz pela via da representação - a da própria tragédia escrita, referida às suas próprias representações provenientes dos seus sonhos em sua auto-análise.

A entrada da tragédia de Édipo como referência para a organização psíquica introduz a concepção do psiquismo como representação. Pois a única via através da qual podemos ter acesso ao trauma é naquilo em que ele é re-apresentado em suas diferentes maneiras.

Este movimento na teoria freudiana lança-nos hoje além de uma discussão sobre ambas teorias e seus desdobramentos clínicos. Sua repercussão mais significativa parece-me a de situar a vida psíquica além da natureza, instaurando-a como sendo um registro de cenas dramáticas de relações (obviamente tendo como núcleo a tríade pai, mãe e filho), isto é, jogadas numa ordem social-cultural, sem o qual não haveria nem trauma nem sedução. Aí retomamos algo, que vale rever: o fato de que o trauma primeiro, portanto edipiano, é justamente o de nascermos para a cultura; o batismo da cultura necessário a uma espécie filogenética animal, com a especificidade humana, que não sobrevive filogeneticamente, mas sobre-vive constituindo-se ontogeneticamente. O que quer dizer que a partir desse momento, traumático porque instala um rompimento com a natureza, com o desejo alienado no desejo da mãe, o homem tem (para sobre-viver) que se re-conhecer humano, pela via do outro – semelhante – e o Outro (cultura, linguagem), diferente, constituindo-se sujeito de seu desejo. Assim se instala as vicissitudes do drama, e o psiquismo como representação como re-apresentação, como lembrança do trauma.


e a Clínica...

A escuta analítica na clínica é a escuta das vicissitudes da constituição humana, ou seja, ao fim e ao cabo, a escuta do movimento do desejo do sujeito se constituindo.

Nesse sentido, a escuta remonta ao trauma edipidano, no sentido em sua constituição; revivido, re-apresentado na transferência, ou representado na transferência, possibilitando-lhe ressignificações. Nesse sentido, o que mais importa nesta lembrança re-apresentada é a reconstrução que o sujeito pode fazer desse trauma. O re-vivido importa para a escuta analítica enquanto representação que permite ao sujeito reescrever sua história.

A passagem de Freud da teoria do trauma para a teoria da fantasia possibilita este tipo de escuta. Isto significa reencontrar o drama de Édipo vivido na representação singular de Hamlet, e a ambos na singularidade de representações do trauma, introduzindo uma convocação para a reconstrução da história do sujeito numa direção regressivo-progressiva que possa lhe revelar a posição assumida diante do trauma.


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