Textos Inéditos

 Clique aqui para fazer o download
deste texto para impressão

Educação: inscrição simbólica do desejo

MARIA LUIZA ANDREOZZI

O ato educativo é concebido como ato de inscrição da criança nos laços socioculturais através da transmissão de conhecimentos. A educação faz parte de um processo sociocultural e se define por uma intervenção social. Está comprometida conseqüentemente com o processo histórico, político e econômico da sociedade, e com o processo subjetivo das pessoas que compõem esta sociedade. O ato de educar implica numa inscrição social do significante que representa o sujeito, representando o próprio sujeito na inscrição simbólica.

Ao transmitir conhecimentos a educação se apresenta como significante cujos significados traduzem as transformações possíveis da metáfora paterna em novos significantes para a cultura. Desse modo ela se produz como discurso de articulação social e opera como discurso. Do modo mais genérico, aparece como discurso “humanizador do homem”, ou no sentido de conduzi-lo a se engajar num projeto social, (no Outro), como podemos notar nas clássicas definições de educação, notadamente representada na maneira como Jaeger a expõe na “Paidea”:

“Toda educação é assim o resultado da consciência viva de uma norma que rege a comunidade humana, quer se trate da família, de uma classe ou de uma profissão, quer se trate de um agregado mais vasto, como um grupo étnico, ou um estado.
A educação participa na vida e no crescimento da sociedade, tanto em seu destino exterior como em sua estruturação interna e desenvolvimento espiritual; e, uma vez que o desenvolvimento espiritual depende da consciência de valores que regem a vida humana, a história da evolução está condicionada pela transformação dos valores válidos para cada sociedade. Da dissolução e destruição das normas advém a debilidade absoluta de qualquer ação educativa” (Jaeger, 1995, pág. 4).

Gostaria agora de refletir sobre o próprio ato de educar em seu tecido elementar, básico; contribuindo para explicitá-lo como um dos operadores da organização psíquica.


1- O conhecimento como significante

Uma mãe e um pai educam o filho desde o momento do nascimento. Por quê? Bem, tomando de novo a fala mais elementar sobre o assunto, os pais justificam a prática educacional que oferecem a seus filhos, seja ela qual for, porque “a criança não sabe o que deve fazer, como deve fazer, e nós a ensinamos, nós a orientamos para que ela se torne gente, senão pode até morrer!”. Então não é possível renunciar à educação, mesmo para quem pretenda uma “educação natural”. Aí já entramos num campo cheio de armadilhas e equívocos. Ao educar o filho, os pais, muito particularmente a mãe, o fazem em nome dos ideais simbólicos da cultura em que estão inseridos e da maneira como nela se posicionam. Utilizam-se dos ideais imaginários sobre a cultura a que pertencem. Os pais educam construindo um suposto saber articulado como discurso a partir dos significantes presentes na cultura como conhecimento. Transmitem aos filhos esse discurso que se constitui no próprio ato de educar.

“Colocar os conhecimentos como força viva formativa a serviço da educação e formar por meio dele verdadeiros homens, como o oleiro modela sua argila e o escultor suas pedras, é uma idéia ousada e criadora que só podia amadurecer no espírito daquele povo artista e pensador. A mais alta obra de arte a que seu anelo se propôs foi a criação do Homem vivo. Os gregos viram pela primeira vez que a educação tem de ser também um processo de construção consciente” (Ibidem, pág. 13 – grifos meus)

O saber com o qual a mãe acolhe a criança quando ela tem uma dor de barriga está constituído por estes ideais simbólicos da cultura enquanto significantes do Outro articulados em sua singularidade (da mãe). A criança os ignora (não sabe), motivo pelo qual “poderá morrer” se não for acudida por este outro-mãe que sabe, ou supostamente sabe, o que é melhor para seu filho. A mãe elabora um suposto saber articulado como discurso sobre a criança.

Por que a criança não sabe? A criança não sabe porque a natureza humana não predispõe ao humano dispositivos herdados geneticamente para que ele sobreviva. O humano está rompido, separado da natureza. Ele se encontra em estado de privação – não saber. Neste estado, demanda “outro” humano para que suas necessidades básicas de sobrevivência possam ser supridas e ele não venha a morrer nesta situação de desamparo. O outro marca o encontro da criança com o social, com a cultura, ou seja, com o estranho-conhecimento que não obstante lhe ampara; mas é estranho à sua natureza, mesmo sendo a mãe. Diante do estranho-cultura-conhecimento, a criança como significante está remetida a Outro significante mediada pelo outro-mãe.

A mãe se dirige à criança, ensinando-a, acudindo-a, pela via do discurso. Então é o discurso de um suposto saber da mãe que acolhe a criança, dado que ele acolhe e dá suporte à própria mãe diante da emergência da sua própria privação.

“A linguagem é toda ela discurso, em virtude desse singular poder de uma palavra que passa por sobre o sistema dos signos em direção ao ser daquilo que é significado” (Foucault, 1990, pág. 111).

A linguagem como Outro dá para os humanos, mãe e criança, a possibilidade da sobrevivência; pois nela está o conhecimento.

“Conhecimento e linguagem estão estreitamente entrecruzados. Têm, na representação, mesma origem e mesmo princípio de funcionamento; apóiam-se um ao outro completam-se e se criticam incessantemente. Em sua forma mais geral, conhecer e falar consistem primeiramente em analisar a simultaneidade da representação, em distinguir-lhe os elementos, em estabelecer as relações que os combinam, as sucessões possíveis segundo as quais podemos desenvolvê-los: é pelos mesmos procedimentos que se aprende a falar e que se descobrem ou os princípios do sistema do mundo ou aqueles das operações do espírito humano, isto é, tudo o que há de sublime nos nossos conhecimentos” (Ibidem, pág.102).

No campo do Outro – Linguagem, a mãe constrói suportes, ou seja, discursos com os significantes extraídos do Outro – Simbólico da cultura - para se amparar na privação. Na medida em que este discurso dá suporte para seu desamparo, ela vai transmiti-lo à criança.

Educada pelos ensinamentos da mãe expressos como discurso de um suposto saber, expresso na mãe como sujeito suposto saber, a criança se constitui neste discurso, amparada por ele. Quando a mãe educa seu filho imantando-o com seu discurso, com suas palavras, fazendo com que ele sobreviva, transmite-lhe um conhecimento enquanto significante que se encontra fora dela, no simbólico da cultura, no além dela que a sustenta, no Outro. Por outro lado, concebendo o psiquismo humano fissurado entre processo consciente e inconsciente, existe um saber (ignorado) do inconsciente que se manifesta no enunciado do discurso, ou seja, em seu avesso, no não dito do dito.

“Se o inconsciente é um saber, se um saber é conexão de significantes, o significante representando um sujeito (do inconsciente) para outro significante e o sujeito sendo por definição suposto, então não distinguimos mais logicamente o sujeito do inconsciente do sujeito suposto saber” (Kaufmann, 1996, pág. 555)

A mãe não produz um discurso “por si própria”. O Outro do qual ela se apropriou sob a forma de ideal simbólico, resultado das transformações dos investimentos de ideais imaginários narcísicos para seu próprio sustento, lhe dá material para oferecer e alimentar seu filho.

“...o objeto a e sujeito suposto saber podem ser considerados como duas modalidades lógicas de abordagem de transferência. O objeto a se situaria no plano do possível. (‘Esse objeto a é situado por cada um e por todos no campo do Outro e é isso que chamamos de possibilidade de transferência’), o sujeito suposto saber no plano do necessário. (‘A transferência é impensável, a menos que se origine no sujeito suposto saber) (Ibidem, pág. 555 – grifos meus)

Falar aqui de “educação natural” parece no mínimo contraditório. Pois tudo o que a mãe faz ao educar seu filho é romper com um estado de privação natural e marcar essa natureza com seus ideais (nada naturais). A educação está inscrita necessariamente no simbólico da cultura, no Outro, na Linguagem como discurso do sujeito suposto saber, enquanto discurso de suposto saber por onde o inconsciente (Outro) pode se expressar consciente, instalando a possibilidade da criança se constituir como “gente”. Ou seja, formando laços sociais, através do discurso do outro que a constitui, enquanto manifestação do Outro. O discurso liga aquilo que foi rompido na natureza, liga um e outro, tecendo a existência social humana.

“O sujeito suposto saber permite situar a transferência em relação ao sujeito da ciência, sobre o qual operamos em psicanálise e cuja origem lógica vem do ato do significante do cogito” (Ibidem, pág. 555)

Se pudéssemos supor a criança conduzida sem o outro, “por sua própria natureza”, äutonomamente, como alguns imaginam, ela teria poucas chances de sobreviver. Não é possível fazer nada com apenas um significante. A educação como ato da linguagem é um ato de fazer laços sociais, e se constitui como palavra-discurso sobre o Outro, articulando UM E OUTRO (significantes) na cadeia de significantes, tornando viável a vida humana.

“Os símbolos envolvem a vida do homem numa rede tão total que conjugam, antes que ele venha ao mundo, aqueles que irão gerá-lo ‘em carne e osso’; trazem em seu nascimento, com os dons dos astros, senão com os dons das fadas, o traçado de seu destino; fornecem as palavras que farão dele um fiel ou um renegado, a lei dos atos que o seguirão até ali onde ele ainda não está e para além de sua morte; e através deles, seu fim encontra sentido no juízo final, onde o verbo absolve seu ser ou o condena – a menos que ele atinja a realização subjetiva do ser-para-a-morte” (Lacan A, 1998, pág.280)

Ao nascer, a criança se encontra em estado de privação, necessidade. Este é seu estado natural. Um grande vazio, um buraco, carência... cárie... CASTRAÇÃO. Para sobreviver, chora demandando do outro (mãe), um objeto que responda à sua privação, retirando-a deste estado.

“Efeito da linguagem, por nascer dessa fenda original, o sujeito traduz uma sincronia significante nessa pulsação temporal primordial que é o fading constitutivo de sua identificação. Esse é o primeiro movimento.” (Lacan B, 1998 - Escritos, pág. 849)

Através das providências que a mãe vai tomando, trocando fraldas, dando o seio para a criança mamar etc, oferece os objetos enquanto significantes, do campo simbólico do Outro, aparentemente supridores das necessidades da criança.

Este outro-mãe também se oferece como objeto supridor das necessidades da criança. Pois é através dela, do seu jeito, de sua fala, de seus toques, organizados como discurso sobre a criança, que esta pode sentir que suas necessidades são satisfeitas. E algumas necessidades, no nível da sobrevivência biológica, são desse modo satisfeitas. Mas a mãe não se relaciona deste modo com seu filho apenas instrumentalmente, nos limites da satisfação das necessidades biológicas da criança. Ao oferecer seu seio para que a criança obtenha dele o leite (alimento para seu organismo), ela também o alimenta com seu desejo de que a criança se alimente. O desejo de que a criança se alimente faz com que ela disponha seu seio para o filho de uma certa maneira, revestindo-o de determinadas palavras. Ela também pode oferecer o seio não desejando que a criança se alimente... Ou desejar que o filho se alimente, mas, quando cansada, pode falar ao filho de seu desagrado ao ter que lhe oferecer o seio... De qualquer forma, ao suprir as necessidades biológicas do filho, a mãe o faz imprimindo-lhe seu desejo. Na relação com o outro a criança deixa seu estado de privação tornando-se desejante do desejo do outro-mãe, marcada com a qualidade, vicissitudes e quantidade do desejo deste outro. Marcada pelo suposto saber deste outro sobre seu desejo, pois neste momento quem sabe dela criança, filho, é supostamente o outro, mãe, enquanto sujeito suposto saber.

“Numa palavra, em parte alguma evidencia-se mais claramente que o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque o outro detenha as chaves do objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto é ser reconhecido pelo outro”. (Lacan A 1998, Escritos, pág. 269 – grifo meu)

O desejo dos pais constrói um discurso de suposto saber sobre a criança, que na verdade é quem a educa. O desejo do outro (pais), extraído do Outro, portanto, é quem educa a criança.

“O desejo do sonho não é assumido pelo sujeito que diz [Eu] em sua fala. Articulado, no entanto, no lugar do Outro, ele é discurso, discurso cuja gramática Freud começou a enunciar como tal” (Lacan C,1998, Escritos, pág. 635 - grifos meus)

O conhecimento está no Outro (estranho - inconsciente que a cultura contém), e é dele que emerge o sujeito suposto saber quando opera um discurso; produzindo-se ao produzir um discurso, ao construí-lo, extraindo deste Outro significantes para articular sentidos na relação da cadeia de significantes e amparar o seu desejo de saber.

“- se o desejo efetivamente está no sujeito pela condição que lhe é imposta pela existência do discurso, de que ele faça sua necessidade passar pelos desfilamentos do significante; e
- se, por outro lado, como demos a entender anteriormente, abrindo a dialética da transferência, é preciso fundar a noção do Outro com maiúscula como sendo o lugar de manifestação da fala...
- deve-se afirmar que, obra de um animal presa da linguagem, o desejo do homem é o desejo do Outro.” (Lacan C, 1998, Escritos, pág. 634 – grifos meus)

A linguagem que opera o sujeito do discurso é, portanto, o lugar no qual o ser humano encontra o suporte para viver a partir de seu estado natural de privação. O humano sobrevive na linguagem porque fala. O discurso dos pais sobre o filho, as palavras que os pais falam aos filhos em torno de um suposto saber, se constituem como marcas, traços que vão desenhando o contorno da criança, seu eu. Mas esses traços em si não possuem sentido para a criança. Ficam depositados no inconsciente, constituindo o próprio inconsciente. Ali “esquecidos”, constituindo o psiquismo enquanto memória desses traços, permanecem como significantes que aguardam momentos de retornarem.

“O inconsciente é esse discurso do Outro em que o sujeito recebe, sob a forma invertida que convém à promessa, sua própria mensagem esquecida”. (Lacan D, 1998, Escritos, pág. 440)

Mas, o que sabe a mãe sobre seu desejo? De que desejo estamos falando? Estamos falando do desejo inconsciente – de um saber inconsciente. O vazio no qual todo ser humano está constituído, que o coloca numa condição de não saber. No vazio instala-se o desejo de... outro supridor das privações e outras demandas. O desejo emerge como desejo de saber que está no outro (Outro).

“O desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela demanda aquém dela mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia significante, traz à luz a falta-a-ser com o apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da fala, é também o lugar dessa falta” (Lacan C, 1998, Escritos, pág.633)

O desejo demanda o desejo de Outro... e produz a vida humana, criando laços sociais, relações sociais, a própria cultura enquanto Falta.

Então a educação que este outro (mãe) oferece, produz laços sociais, constitui relações sociais, constituindo aí o sujeito humano enquanto sujeito suposto saber. Assim a criança ultrapassa sua dimensão de indivíduo da espécie e se produz como sujeito humano.

“É num movimento de báscula, de troca com o outro que o homem se apreende como corpo, forma vazia do corpo. Da mesma forma, tudo o que está então nele no estado de puro desejo, desejo originário, inconstituído e confuso, o que exprime no vagido da criança – é invertido no outro que dele aprenderá a reconhecê-lo. Aprenderá, porque não aprendeu ainda, enquanto não colocamos em jogo a comunicação.”... “Antes que o desejo aprenda a se reconhecer – digamos agora a palavra – pelo simbólico, ele só é visto no outro.” (Lacan, 1979, pág. 197 - grifos meus)

Voltando à questão acima, o que sabe a mãe sobre seu desejo? Aí é que está. Ela não sabe, ela ignora. O desejo é inconsciente e se apresenta como vazio, como ausência de sentido, ou seja, como significante.

“As relações entre os seres humanos se estabelecem realmente para aquém do campo da consciência. É o desejo que efetua a estruturação primitiva do mundo humano. O desejo como inconsciente.” (Lacan,1987, pág. 282)

Em torno do vazio do desejo são produzidos, criados, tomados objetos que possam ocupar esse lugar: lugar de objeto de desejo construído como discurso de suposto saber; - sempre precário, pois este objeto não está definido em nenhum lugar e não pode ter uma forma definitiva.

Porém o objeto do desejo também causa desejo, quando lhe escapa a possibilidade de realizar plenamente o desejo. Ao se apresentar ao desejo, mostra também o que falta, causando novamente o desejo. Quaisquer que sejam as representações do objeto do desejo serão sempre simulacros, objetos construídos como discurso que se propõe como suposto saber nunca sabido. Haverá sempre uma falta a saber ...falta (h)á saber...

O objeto do desejo sendo impossível de um saber, o que temos é um objeto causa de desejo, pois em sua precariedade ele provoca sempre interrogações, vazios que no drama humano promovem o sujeito como sujeito desejante, sujeito do desejo. Assim por variados, tortuosos caminhos, o desejo não deixa de movimentar o sujeito e de inscrever o sujeito como sujeito do desejo, por meio do significante. Se assim não fosse, o sujeito se encontraria com a morte. O que representa então o sujeito é o significante.

A possibilidade do sujeito se representar no significante, se dá mediante a apresentação de outro significante, de modo que o sujeito possa se constituir numa relação com outro. A mãe aparece para a criança como outro significante, possibilitando à criança significados para os vazios, buracos a que está submetida naquilo da naturalidade de seu organismo, sua carne.

Por não saber sobre seu desejo (inconsciente - Outro), a mãe investe na criança constituindo-a como objeto de seu desejo, representando-a para si nos vazios aos quais também está submetida, construindo sobre a criança um saber (suposto); ou seja, um discurso sobre a criança. O filho representa para a mãe o objeto de desejo e a completa narcisicamente. A mãe investe no filho (falo) como sendo aquilo que lhe falta (vazio), construindo um discurso no qual o filho se constitui. A mãe espera que o filho realize seu desejo expresso no discurso que faz sobre ele. O filho procura atender o desejo (inconsciente) da mãe expresso no discurso desta.

Dentre as inúmeras posições possíveis de mãe e filho se espelharem, amor e ódio, ou seja, se identificarem, encontramos o núcleo do drama humano e da vida humana. Do mesmo modo que a mãe busca no filho a representação de seu objeto de desejo, a criança também busca na mãe a representação de seu objeto de desejo.

Há nesta relação de identificação espelhada, a constituição narcísica do sujeito, onde um e outro formam o mesmo, = Um. A identificação narcísica, imaginária, é imediata de um a outro, onde o outro desaparece no um; ou seja, manifesta a alienação do sujeito no desejo do outro. Não há discriminação entre eles, não aparece a falta, e nem a diferença. A mãe investe no filho um suposto saber, educando-o; e o filho investe nela como objeto de suposto saber, demanda deste outro-mãe um Saber alienado de si, pois “quem sabe sobre o filho é a mãe”, é o outro, dado que sem este “saber” da mãe o filho teria dificuldades para sobreviver. Para a criança o “Saber” está na mãe. Esta, sendo outro, deixa de sê-lo ao se constituir Um com a criança. A relação um e outro desaparece quando um vê a si no outro e vice-versa, construindo por conta do imaginário a identificação no outro, confirmando: “Eu sou o outro”. “O outro sou eu”. Disto resulta o ocultamento do outro e conseqüentemente o reconhecimento do outro como diferente. O eu se completa narcisicamente com sua imagem refletida no espelho-outro, e demanda deste outro a si próprio. O que a criança não reconhece é o Outro enquanto simbólico (expresso na cultura-conhecimento-linguagem), de onde a mãe extrai significantes para compor seu discurso.

“O próprio desejo no homem constitui-se sob o signo da mediação: ele é o desejo de fazer seu próprio desejo reconhecido. Ele tem por objeto um desejo, o do outro, no sentido de que o homem não tem objeto que se constitua para seu desejo sem alguma mediação, o que transparecem suas necessidades mais primitivas....” (Lacan, 1998. pág. 183 - grifos meus)

Entre Um e Outro há uma hiância, uma diferença. E é nesta diferença entre Um e Outro que o sujeito pode se constituir como desejante - no vazio significante, lugar terceiro que marca a diferença entre Um e Outro, o sujeito emerge, deixando sua posição alienada no desejo do outro.

Quando a mãe se acha demais sabida, nega o Outro de onde extrai seu suposto saber, dificulta o movimento de seu filho na direção da elaboração de laços sociais, porque investe num só objeto de desejo para ambos, negando sua falta. Neste caso, por se achar completa, não indica para a criança Outro que não seja ela a saber. A criança tem poucas chances de se movimentar numa busca desejante fora daquilo que é delimitado pela mãe. Este outro-mãe, ao educar a criança, se oferece para ela como sendo o Outro, sem buracos, sem vazios, sem falta, sem castração, impedindo que o filho deseje Outro (um Pai), que não seja a mãe-Outro. Ela se situa como se antes dela não existisse ninguém, como se ela não tivesse obtido seu suposto saber de ninguém, mas por si só. Tendo obturado sua falta, seu vazio, ambos podem se fechar num círculo narcísico incestuoso.

Mas a mãe como ser em falta, que contém sua falta, e num movimento desejante, ou seja, castrada, se interroga, interrogando o filho, deixando-o em falta, o remete a um pai, a um outro do Outro-Pai (enquanto significante; Linguagem-Cultura- Conhecimento), inscrevendo-o num registro simbólico onde ele pode buscar reconhecimento de seu desejo).

É no NOME DO PAI que se deve reconhecer o suporte da função simbólica, que desde o limiar dos tempos históricos identifica sua pessoa com a imagem da lei.” (Lacan A, 1998, pág. 279 – grifos meus)

A mãe lança seu filho para Outro que não ela, um terceiro lugar na medida em que não lhe responde com afirmações, mas o interroga, fazendo-o procurar outro e no Outro um suposto saber, tornando-o desejante. Ao se encontrar com sua falta esta mãe-outro também busca outro e do Outro que não o filho, um terceiro, ou... um Outro significante que não será exclusivamente o filho, inscrevendo-se como desejante em Outro-Lugar. A maneira de mãe e filho se posicionarem como desejantes será sempre singular. Esta posição está envolvida por inúmeros pontos na malha do tecido das identificações que a constituiu.

A diferença entre mãe e filho, fruto da castração operada pelo terceiro a que ambos estão submetidos, separa a unidade mãe e filho, permitindo que entre eles possa aparecer esse terceiro que rompe com a dualidade fechada entre ambos. Podem assim se deslocar investindo em Outro lugar (lugar terceiro), do simbólico, da cultura - lugar do conhecimento onde é possível construir um objeto de desejo - suposto saber sobre o não saber (Inconsciente) do desejo.

“Que o sujeito chegue a reconhecer e nomear seu desejo eis aí a ação eficaz da análise. Mas não se trata de reconhecer algo que já estaria aí, já dado, pronto para ser coaptado. Ao nomeá-lo, o sujeito cria, faz surgir uma nova presença no mundo. Ele introduz a presença como tal e, da mesma feita, cava a ausência como tal.” (Lacan, 1987, pág. 287 – grifos meus)


2- (Re)Conhecimento: inscrição simbólica do desejo como cultura

As construções de um suposto saber onde o sujeito desliza pelo fio do desejo (Inconsciente), percorrendo significantes, constituem o discurso.

“Se há um saber que não se sabe, como já disse, ele é instituído no nível de S2, ou seja aquele que chamo de outro significante. Esse outro significante não está sozinho. O ventre do Outro, do grande Outro, está repleto deles. Esse ventre é aquele que dá, como um cavalo de Tróia monstruoso, as bases para a fantasia de um saber-totalidade. É claro, porém, que sua função implica que de fora venha alguma coisa bater à porta, sem o que jamais sairá nada dali” (Lacan, 1992, pág. 31 – grifos meus)
“Mas se é de seu discurso que se trata, e esse discurso possibilita que haja um homem motivado pelo desejo de saber, trata-se de saber o quê? – Que valor ela própria tem, essa pessoa que está falando.” (Lacan, Ibidem, pág. 32- grifos meus)

O discurso produz o suposto saber sobre o Outro (simbólico enquanto conhecimento - cultura); com o qual o homem representa e produz sua história, a própria cultura-conhecimento como um lugar possível de viver, de contatuar e de percorrer movido por suas interrogações, ou seja, por sua falta, a castração.

O sujeito inscrito no vazio de um saber ignorado sobre seu desejo, cujo objeto é impossível de ser apreendido, pois o que o representa é o significante (vazio de significados), busca, extrai do significante do outro, o Outro significante (tesouro de significantes), para representar-se. Nesse movimento produz através dele (Outro significante, enquanto terceiro) um discurso sobre o Outro-conhecimento; ou objetos da cultura como representação da falta (significante) que se sustentam como suposto saber, por representarem o objeto de desejo, inscrevendo o sujeito (no Simbólico – Outro). O sujeito constrói e re-constrói esses objetos como objetos do Outro, de conhecimento, ou da cultura. O conhecimento, portanto, está no Outro (significante- S2).

O “conhecimento” que a educação visa transmitir, enquanto tal, ou seja, enquanto Outro, é inacessível. Mas, enquanto lugar que suporta o suposto saber, permite a elaboração de um discurso de suposto saber sobre o conhecimento, ou seja, sobre o Outro. O Outro é o lugar onde o sujeito desejante (em falta) pode encontrar o reconhecimento de seu desejo (no registro simbólico), inscrevendo-o num objeto de desejo, como discurso de suposto saber. O que a educação transmite é na verdade um discurso de suposto saber sobre o desejo inscrito no simbólico (Outro-conhecimento). Fazendo este percurso podemos situar a cultura-conhecimento como representação elaborada em discurso que se constitui como objeto na tentativa de suprir a falta de saber (inconsciente) sobre o objeto de desejo.

Por sua vez os discursos de suposto saber que encontramos ao longo da história, contidos nos mitos, nas filosofias, na ciência, na religião etc, compondo a cultura, expressam um estilo de vida, uma modalidade de existir como representação da falta produzida pelo movimento desejante. A cultura expressa o estilo de fazer laços sociais: como e quanto os sujeitos se posicionam enquanto desejantes diante da falta (no Outro); o quanto e como este vazio é contido com o suposto saber representado no simbólico como objeto de desejo enquanto discurso sobre o desejo. A cultura-conhecimento como significante se estrutura enquanto inscrição simbólica estruturante do sujeito.

O que a educação pode transmitir são discursos de suposto saber, por ser ela também um ato de discurso, submetida ao significante. Sua possibilidade enquanto significante é de produzir um discurso e enquanto tal o sujeito efeito do discurso. Sua possibilidade é de inscrição simbólica. Ela atua pela palavra, que busca dar continência, sustentação para o sujeito constituir-se na cultura, inscrevendo nela o seu desejo enquanto inscrição simbólica.

Vejamos no Seminário 1 de Lacan a recuperação de Sto. Agostinho sobre a palavra:

“Agostinho vai tentar mostrar que, mesmo quando se quer aprender, ensina-se ainda. Por quê? Porque se ensina àquele a quem nos endereçamos em que direção se quer saber. Portanto, a definição geral: -Você vê pois, meu caro, que pela linguagem, não se faz nada senão ensinar... É por isso que toda palavra é já, como tal, um ensinar.” (Lacan, 1979, pág. 285 – grifos meus)

Ao educar o filho a mãe está sustentada pelo simbólico da cultura - pelo Outro, campo da cultura-conhecimento enquanto linguagem, onde os discursos são construídos. O simbólico da cultura está inscrito na linguagem e como linguagem. De modo que para a mãe educar seu filho, transmitindo-lhe um suposto saber, só pode fazê-lo através da linguagem e enquanto linguagem na qual ela elabora seu discurso. Ao fazer isto a mãe inscreve seu filho na linguagem, no campo do Outro, lugar terceiro onde ela própria está inscrita e de onde extrai palavras para amparar com elas o filho em estado de privação. A possibilidade de sobrevivência do sujeito humano, da qual já falamos, encontra-se na linguagem, suporte para a existência humana.

O estado de privação do sujeito humano ao nascer, marcado pelo significante e sustentado pelo significante mãe nomeado pela cultura (Outro), ou seja, em relação a um pai, o introduzem no campo da linguagem-conhecimento. A criança passa então a habitar o campo da linguagem-conhecimento, lugar Outro.

Através das leis da gramática a linguagem permite a construção de um discurso que, ao se construir como relação entre letras, palavras e frases, produz a relação mãe-filho, na qual ambos ficam diferenciados. A linguagem produz o sujeito humano nos laços sociais, produzindo nesse movimento os próprios laços sociais, a cultura. Na linguagem está a possibilidade do humano representar o vazio que o constitui e ao mesmo tempo expô-lo, apresentá-lo, denunciá-lo e recobri-lo.

O que a linguagem enquanto discurso representa é um saber suposto de algo que na verdade não se sabe. Pois o acesso direto ao conhecimento-cultura, enquanto saber verdade sobre a sexualidade, não é possível senão pela mediação discursiva. O discurso do sujeito recobre sua falta (de saber sobre a sexualidade recalcada), inscrevendo-o na linguagem. Por outro lado, em seu avesso, mostra a fissura, o vazio constitutivo do sujeito, na medida em que sempre haverá algo da sexualidade que escapa ao discurso.

Diante do Real da natureza, a linguagem pode apreender algo que a represente, escapando-lhe sempre esse Real, pois a palavra não cobre todo o Real: ao afirmar, nega, produzindo lapsos por onde o Real escapa. Ela apresenta sempre buracos, vazios, gaguejos, trocas, atos falhos, por onde o discurso insiste em retomar, buscando sentido ou um saber (suposto). A cadeia de significantes da linguagem é movimentada pelo sujeito do desejo (inconsciente – não saber), que por sua vez nela é movimentado, expressando-se no percurso do desejo enquanto sujeito suposto saber. O sujeito (do desejo – inconsciente) emerge onde o discurso faz fissura, ou seja, entre um e outro significante – Lugar Terceiro na cadeia do discurso.

A inserção e constituição do sujeito (do desejo) na cadeia de significantes da linguagem se dá na medida em que na relação de um significante (criança) para outro significante (mãe) seja possível a introdução de um terceiro; a linguagem, lugar no qual ambos estão referidos e discriminados (S2 - Outro) - significante paterno, da falta, que opera o corte a unidade entre mãe - filho... O sujeito (do desejo) emerge na ruptura, no espaço vazio (Outro – inconsciente- não saber) entre S1 e S2, nesta hiância que marca a diferença entre S1 e S2, inscrevendo mãe e filho em lugares diferentes. Diferença na qual o discurso é construído. O discurso separa mãe e filho, permitindo uma relação entre eles via palavra. Mãe e filho estão, portanto, subordinados a um terceiro (simbólico), ou seja, à linguagem-cultura-conhecimento.

“Isto quer dizer que toda relação a dois é sempre mais ou menos marcada pelo estilo do imaginário e que para que uma relação tome seu valor simbólico é preciso que exista a mediação de um terceiro personagem que realiza, em relação ao sujeito, o elemento transcendente, graças ao qual sua relação ao objeto pode ser sustentada a uma certa distância.” (Lacan, 1953, pág. 99)

A cultura-conhecimento como linguagem, como simbólico, enquanto “tesouro de significantes” – Outro – inscreve e representa o desejo, ao mesmo tempo que é a expressão desse desejo nela inscrito.

Através da mediação do Lugar Outro, entre Um e Outro ocorre o (re)conhecimento da falta por onde passa o significante. O (re)conhecimento da falta marca a diferença entre um e outro, já que o que define um, falta ao outro. O conhecimento se produz então como (re)conhecimento do significante da falta no Outro.

“O conhecimento humano, e da mesma feita as relações da consciência, é constituído por uma certa relação que chamamos de ego, em torno da qual centra-se a relação imaginária. Esta última ensinou-nos que o ego nunca é apenas o sujeito, que ele é essencialmente relação ao outro, que ele toma seu ponto de partida e de apoio no outro. É a partir deste ego que todos os objetos são olhados.” (Lacan, 1987, pág. 224)

“Esta rivalidade constitutiva do conhecimento em estado puro é, evidentemente, uma etapa virtual. Não há conhecimento em estado puro, pois, a estrita comunidade do eu e do outro no desejo do objeto enceta uma coisa radicalmente outra, ou seja, o reconhecimento.
“O reconhecimento supõe com toda evidência um terceiro.
Para que a primeira máquina bloqueada na imagem da segunda possa chegar a um acordo, para que sejam forçadas a se destruir no ponto de convergência do desejo delas – que é em suma o mesmo desejo, já que neste nível elas são um só e mesmo ser – seria preciso que a maquininha pudesse ‘informar’ à outra, dizer-lhe: - Desejo isto. Não é possível. Admitindo que haja [eu], isto se transforma logo em desejas isto. Desejo isto quer dizer – Tu, outro, que és minha unidade, desejas isto.” (Lacan, Ibidem, pág. 71- grifos meus)

A linguagem-conhecimento (re)escreve a inscrição simbólica do significante paterno como significante da falta, porque o (re)conhece. E assim torna possível o discurso de um suposto saber construído como objeto de desejo.

O discurso de um suposto saber, como (re)conhecimento, é construído num lugar terceiro, ou seja, no vazio entre um e outro, lugar Outro, do simbólico da cultura-linguagem, recobrindo a falta entre um e outro por onde se expressa o Outro inconsciente. A cultura porta o conhecimento como linguagem, linguagem como conhecimento, como “tesouro dos significantes”, dado que dela podem ser produzidos sentidos variados e diferentes, elaborados como discurso.

O lugar Outro por si só e diretamente é inacessível, pois é ao fim e ao cabo o lugar do inconsciente, dado que mesmo quando nos referimos à linguagem-cultura-conhecimento, estamos referidos ao estranho do homem, portanto inconsciente. O estranho enquanto algo que não é da natureza do homem. Algo que mostra o que lhe falta (significante) – sua ruptura com a natureza. A cultura-conhecimento como lugar do simbólico apresenta-se para o sujeito como significante – ausência de significados, que movimenta o sujeito a fazer sentidos, significados, construindo um discurso de suposto saber sobre o conhecimento-cultura, estruturante do sujeito, na tentativa de recobrir sua falta de acesso ao inconsciente expresso como cultura-conhecimento-linguagem. O humano extrai significantes da cultura para construir um discurso, ou seja, a partir dos significantes cultura-conhecimento articula uma cadeia de significantes, articulando-se nela, ou seja, produzindo-se como sujeito.

“A palavra mostrei a vocês em forma abreviada, desempenha este papel essencial de mediação. Quer dizer, de algo que altera os dois parceiros em presença, a partir do momento em que realizou... É igualmente uma ação. E aliás, também para nós, ‘palavra dada’ é também uma forma de ato. Mas é também algumas vezes um objeto, quer dizer, alguma coisa que levamos, um feixe. É qualquer coisa. Mas a partir daí existe algo que não existia.
Conviria também uma outra observação: é que esta palavra mediadora não é pura e simplesmente mediadora neste plano elementar; ela permite entre dois homens transcender a relação agressiva fundamental com a miragem do semelhante. É preciso que ela seja ainda justamente outra coisa, pois se refletimos a respeito disso, vemos que não só ela constitui esta mediação, mas afinal, ela constitui a própria realidade.” (Lacan,1953, pág.96, 97)

O conhecimento então é (re)conhecimento construído por diferentes discursos, pois existe como linguagem na qual o acesso se dá pela palavra, ou seja, pela relação entre letras – signos - traços, em si sem sentido, que na composição da palavra produzem sentidos. Mas, para que o discurso possa ser construído segue as leis da linguagem-conhecimento, está submetido às leis da linguagem. Ou seja, submetido à lei de interdição do incesto. Sem a lei que organiza as relações (do discurso enquanto social), estas ficam atomizadas e não fazem laços sociais.

“É exatamente o que chamamos aqui de símbolo. O nome é a totalidade significante-significado, particularmente enquanto serve para reconhecer, porque sobre ela se estabelece o pacto e o acordo. É o símbolo no sentido de pacto. O nomem se exerce no plano do reconhecimento. (Lacan, 1979, pág. 291- grifos meus).

A lei da linguagem organiza o discurso para que ele faça sentido, discriminado, separando que pode do que não pode. Ao fim e ao cabo, uma lei que impede a indiscriminação incestuosa. O conhecimento como cultura-linguagem se produz como discurso a partir de uma lei que estrutura o discurso como discurso social e enquanto (re)conhecimento desta lei que dá sentido ao significante inscrito no Outro. Neste percurso o conhecimento se produz como discurso social sobre um suposto saber do Outro, ou seja, de (re)conhecimento do Outro.


3- Educação como ato da linguagem que institui a inscrição social (subjetiva)

Educação enquanto transmissão de conhecimentos para formação do homem, e assim disponibilizá-lo a viver em sociedade, implica na transmissão de uma marca, de um signo – sem sentido em sua origem. Implica na transmissão de significantes, ou seja, de conteúdos como significantes que no discurso do professor produzem um sentido, o sentido.

Este sentido produzido pelo professor como discurso-palavra, ato da linguagem, está remetido ao movimento desejante do professor. Este, submetido às leis da linguagem, ao (re)conhecer a falta que o constitui, produz um discurso suposto inscrevendo sua falta no Outro, como objeto de seu desejo representado no conteúdo transmitido (matemática, história etc). Neste discurso o professor revela seu estilo de inserção social, de inscrição simbólica. Ele conserva e transforma os significantes da cultura-conhecimento, produzindo com eles outros sentidos, sentidos particulares que montam seu discurso.

Ao transmitir o conteúdo, o professor transfere para o aluno o sentido que dá a este conteúdo do discurso e com ele seu desejo. Dito de outro modo, o conteúdo transmitido está totalmente atravessado pelo desejo (inconsciente) do professor, ou seja, pelo seu não saber. Ensinar é um ato da palavra que constrói um discurso de suposto saber originado no não saber (inconsciente) do professor inscrito no Simbólico (Outro). ENSINAR É UM ATO DA PALAVRA MEDIADO PELO DESEJO.

O aluno toma o conteúdo transmitido pelo professor como um significante para fazer relações. Embora o professor busque transmitir um sentido em seu discurso, este é um discurso de suposto saber a partir da ignorância do saber (inconsciente) ou da inacessibilidade do conhecimento (sobre a sexualidade infantil recalcada). Movimentado pelo desejo, representado pelo significante, o aluno também pode produzir seu discurso como suposto saber sobre o conteúdo transmitido pelo professor. Ele conserva algo dos significantes transmitidos pelo professor e também os transforma na articulação de seu discurso, inscrevendo nele seus significantes, seu desejo. Investe seu desejo (S1) no desejo do Outro (S2), podendo tomar o desejo do outro para si, para igualar-se ao professor, repetindo o discurso do professor, constituindo seu desejo no desejo do outro-professor, indiscriminado dele, sem (re)conhecê-lo como outro diferente. Neste caso o aluno toma o discurso do professor como sendo o discurso imperativo do Outro, discurso do Saber, ou do Conhecimento, não (re)conhecendo a falta entre ambos, a diferença entre eles, como se entre eles não houvesse um lugar terceiro.

O aluno também pode se diferenciar do professor quando (re)conhece entre ambos um discurso efeito da linguagem, lugar terceiro, produzindo uma cadeia significante (relação S1-S2); ou seja, seu discurso de suposto saber a partir do discurso de suposto saber do professor. (Re)conhece aí a diferença entre ambos, a falta de um que define o outro. Aprender também é um ato da palavra que constrói um discurso de suposto saber originado no não saber (inconsciente) do aluno inscrito no simbólico. APRENDER É UM ATO DA PALAVRA MEDIADO PELO DESEJO.

Abre-se nesta interlocução o campo das vicissitudes do ato educativo – ensinar-aprender –, pois neste ato manifestam-se as relações do sujeito (professor-aluno) com o conhecimento, ou seja, os diferentes estilos possíveis das relações com o Outro (simbólico da cultura), lugar terceiro, que surge diante da falta (castração). Ensinar e aprender, mediados pelo desejo de quem ensina e de quem aprende, expressa e movimenta as vicissitudes do desejo diante da castração (falta). Quando o professor faz seu discurso de suposto saber, também transmite, transfere seu não saber. Seu inconsciente está lá presente transmitindo “coisas” que “nem ele sabe”, e que vem do Outro que sabe. Não há como controlar esse processo, mas é possível tratá-lo, conviver com ele... (Outro)

“O desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela demanda aquém dela mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia significante, traz à luz a falta-a-ser com o apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da fala, é também o lugar dessa falta.” (Lacan C, 1998, Escritos, pág. 633)

Ao fim e ao cabo, as relações com o conhecimento revelam a construção de um discurso de um suposto saber de - (re)conhecimento da falta no Outro -, que se produz como objeto de desejo, revelando-se como objeto de desejo representante da falta. Aí o objeto de desejo-conhecimento recobre a falta, mas por isso mesmo mostra que ela existe. As relações entre professor e aluno ocorrem como relações transferenciais. Professor e aluno identificam-se na falta – com o significante da falta no Outro, vivida nas vicissitudes das identificações da falta de UM em relação ao OUTRO.

“A condição primordial para tanto é que ele esteja imbuído da diferença radical entre o Outro a quem sua fala deve endereçar-se e esse segundo outro, que é o que ele vê e do qual e através do qual o primeiro lhe fala no discurso que profere diante dele. Pois é desse modo que ele poderá ser aquele a quem esse discurso se dirige” (Lacan F, 1998, pág. 431)

Estas relações se movimentam num percurso por onde passam os sintomas (do aluno e do professor), manifestos no discurso do “problemas de aprendizagem”. Como sempre falta algo a saber porque não há objeto que dê conta de suprir a falta constituinte do humano, não há discurso que dê conta do Saber-Verdade. Os esforços na direção de obter da educação o bem estar social estão fadados a um fracasso. Mesmo porque a cultura traz ao homem uma dose de mal estar, como sublinhou Freud no “Mal estar da Civilização”, na medida em que lhe é estranha. Haverá sempre um mal estar na educação, fruto de sua impossibilidade em suprir a falta original do sujeito, ou seja, de construir um discurso a ser transmitido como conhecimento-saber que restaure o objeto de satisfação original infantil perdido, ou seja, a satisfação sexual incestuosa impedida. A educação enquanto ato da linguagem que possibilita a produção da palavra que faz o discurso produz a inscrição simbólica do desejo. Viabiliza a emergência do sujeito nos laços sociais, isto é, da própria cultura, mas em troca de uma quantidade de resignação, de frustração, porque também revela a todo instante que há falta no conhecimento, e que nos cabe viver em falta... porque esta é que movimenta o desejo.

A educação opera no campo da linguagem construída pelo discurso e construindo um discurso. É nela que o sujeito (em falta) se constitui, podendo representar sua falta, ou seja, seu desejo - num suposto saber que a linguagem permite que se elabore como discurso por onde emerge o sujeito.

O significante educação permite desse modo a introdução do sujeito na cultura. A educação é um ato de inscrição simbólica do significante que representa o sujeito. É a linguagem-educação como campo do Outro que acolhe o recém-nascido em seu estado de privação natural e é dela (linguagem) que a mãe (se remetida a ela) extrai significantes que a suportam para dar continência aos significantes de seu filho, e ao próprio significante filho. É na linguagem que a criança indefinida é nomeada como filho. E é nela que o filho pode referir-se ao pai, e assim inserido na cadeia de significantes, ordenar sua vida, ou seja, ocupar seu lugar na série de filiação. Em última instância, educação é filiação na cultura. Na cultura o sujeito pode tomar a palavra na qual foram nomeadas as insígnias significantes contidas na metáfora paterna para representar seu desejo de sujeito humano, produzindo outras metáforas, sentidos novos para sua existência.

A possibilidade da educação “transmitir conhecimentos” se dá como (re)conhecimento, como discurso de suposto saber sobre o desejo. Como o conhecimento está supostamente no Outro, a apropriação deste Outro, não pode ocorrer “na realidade”. A viabilidade desta apropriação (sempre precária) depende de uma aproximação do Outro, através dos significantes que a linguagem comporta representando um suposto saber do Outro. Esse discurso será sempre incompleto e fragmentado porque ao sujeito falta o Outro; ao um falta o outro. Mas esta falta é que produz o discurso, se desdobrando na cadeia de significantes, produzindo a educação como linguagem; lugar do discurso. A educação está na palavra que introduz o sujeito na rede dos laços sociais da filiação enquanto inscrição simbólica.



BIBLIOGRAFIA


BERGÈS, JEAN.-A- O Corpo e o Olhar do Outro, Porto Alegre, Cooperativa Jacques Lacan, 1988.
____________ A Instância da Letra na Aprendizagem, Boletim da Associação de Porto Alegre, No. 6, 1991.
____________ -B- em Escritos da Criança, Porto Alegre, Centro Lydia Coriat, ano II, No. 2, 1988. Textos:
- Leitura e Escrita Literais; -Ao Pé da Escritura; Retardo da Linguagem e Afetividade; Lesão Real e Lesão Fantasmática; Debilidade e Problemas Instrumentais; Nota sobre Transtornos Instrumentais e as Desarmonias Evolutivas.
CHULAN, TANIA MARIA OLIVIER. Escritos sobre os Escritos de Lacan, Vitória, Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1981
FOUCAULT, MICHEL. As Palavras e as Coisas - uma arqueologia das ciências humanas, S. P. Martins Fontes, 1990, 5a. edição
FREUD, SIGMUND. Obras Completas, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1989, Textos:
- 1900 - La Interpretación de los Sueños, Vols 4 e 5
- 1901 - Psicopatología de la Vida Cotidiana, Vol 6
- 1904 - Sobre la Psicoterapia, Vol. 7
- 1905 A - Tres Ensaios de Teoria Sexual, vol. 7
- 1905 B - El Chiste e su Relación con lo Inconsciente, vol.8
- 1908 -Análisis de la Fobia de un Nino de Cinco Años, vol. 9
- 1908 - Sobre las Teorías Sexuales Infantiles, vol.9
- 1910 - Un Recuerdo Infantil de Leonardo da Vinci, vol. 11
- 1912 - Sobre la Dinámica de la Transferencia, vol. 12
- 1914 -Recordar, Repetir y Reelaborar, vol. 12
- 1915 -Pulsiones y Destinos de Pulsion, vol 14
- 1915 - A Repressão, vol. 14
- 1915 - O Inconsciente, vol 14
- 1916/1917 - Conferencia 27 - La Transferencia vol. 16
- 1916/1917 - Conferencia 28 - La Terapia Analítica, vol. 16.
- 1920 - Más allá del Princípio de Placer, vol 18
- 1925 - Algunas Consecuencias Psíquicas de la Diferencia Anatómica entre los Sexos, vol. 19
HARARI, ROBERTO. Uma Introdução aos Quatro Conceitos Fundamentais de Lacan, S.P., Papirus Editora, 1990.
- JAEGER, WERNER. Paidéia - a formação do homem grego, S. P. Martins Fontes, 1995.
JERUSALINSHY, ALFREDO. E COL, Psicanálise e Desenvolvimento Infantil, Porto Alegre, Artes Médicas, 1988.
KAUFMANN, PIERRE. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise, R.J., Jorge Zahar Editor, 1996.
LACAN, JACQUES. Escritos, R. J., Jorge ahar Editor, 1998. Textos:
1998 A - Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise;
1998 B - Posição do Inconsciente;
1998 C - A Direção do Tratamento e os princípios de seu poder;
1998 D - A Psicanálise e seu Ensino;
1998 E - Formulações sobre a Causalidade Psíquica;
1998 F - A Coisa Freudiana
1998 G – Kant com Sade
1998 H – De Uma Questão Preliminar
_______________ - Seminário 1 - Escritos Técnicos de Freud, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1979
_______________ - Seminário 2 - O Eu na teoria de Freud e na técnica de Psicanálise, R. J., Zahar Editor, 1987
_______________ - Seminário 4 - A Relação de Objeto, Rio de Janeiro, Zahar Editor, 1995
_______________ - Seminário 5 - Formações do Inconsciente, R.J., Zahar Editor, 1999.
_______________ - Seminário 8 - A Transferência, R. J. Zahar Editor, 1992
_______________ - Seminário 11 - Os Quatro Conceitos Fundamentais R. J., Zahar Editor, 1992
_______________ - Seminário 17 - O Avesso da Psicanálise, R.J., Zahar Editor, 1992
_______________ - Sheakspeare Duras - Wedewkind - Joyce, Lisboa, Assirio&Alvim, 1989.
_______________ - Discussion de l’article de S. Leclaire et J.Laplanche: L’Inconscient une étude psychanalytyque l’Inconscient, VI Coloque de Bonneval, Desclée De Brouwer, 1996
_______________ - O Simbólico, O imaginário e o Real, em “Cadernos Lacan” 1a. parte, Porto Alegre, Associação Psicanalítica de Porto Alegre, sem data
LEVIN, ESTEBAN. O Gesto e o Outro: O Visível e o Invisível, em Escritos da Criança do Centro Lydia Coriat, ano 3, No 3, 1990.
LAJONQUIÉRE, LEANDRO DE. De Piaget a Freud, Petrópolis, Editora Vozes, 1993.
LEMAIRE, AINIKA. Jacques Lacan, uma Introdução, Rio de Janeiro, Ed. Campus Ltda., 1986.
MILLOT, CATHERINE. Freud Antipedagogo, Rio de Janeiro, Zahar Editor, 1987.
NASIO, JUAN DAVID. Os 7 Conceitos Cruciais da Psicanálise, Rio de Janeiro, Zahar Editor, 1988.
PALMIER, JEAN MICHEL. Lacan, s. P., Editora Melhoramentos, 1977.
PONTALIS, J.B. sinopse de Le Desir e son Interpretation, in Bulletin de Psychologie, Vol XII, 1959-1960
ROZA, ALFREDO. Introdução à Metapsicologia Freudiana - 2 - A Interpretação dos Sonhos (1900), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991
______________ Introdução à Metapsicologia Freudiana - Artigos de Metapsicologia (1914-1918), Rio de Janeiro, Zahar Editor, 1995.


Voltar para a página principal | Voltar para o topo desta página

© 2007 educacaoesubjetividade.com.br - Todos os direitos reservados - 2007 [ Webmaster ] [ Política de privacidade ]