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A mensagem cifrada do desejo nos “problemas de aprendizagem”

MARIA LUIZA ANDREOZZI


A psicopedagogia vem se definindo como intervenção no campo da aprendizagem, tratando das condições de aquisição e produção do conhecimento por parte do sujeito, e das condições de transmissão por parte dos professores. A intervenção psicopedagógica diz respeito à relação ensino-aprendizagem que ocorre na relação professor-aluno, mediada pela transmissão de conhecimentos historicamente produzidos e socialmente reconhecidos. É, portanto, uma intervenção educacional, e mais que isso, a forma através da qual a educação se realiza. O mais provocativo na intervenção psicopedagógica tem sido o que se convencionou chamar de “problemas de aprendizagem”. Quanto a isto a intervenção psicopedagógica se encontra imersa numa gama de questões importantes de serem tratadas, pois elas expressam a forma como a educação vem ocorrendo, o lugar que ocupa no discurso social, e como se produz enquanto discurso social.


1- Da ortopedia do “erro” na aprendizagem para a escuta do “erro”...

O contexto dos “problemas de aprendizagem” diz respeito a uma gama ampla de tropeços pelos quais uma criança passa em seu processo de aprendizagem. Em função do tropeço, que resiste às possibilidades psicopedagógicas da escola, ou dadas as resistências da escola em se empenhar no decifrar o significado da mensagem contida nos “problemas de aprendizagem”, a criança é encaminhada a um tratamento psicopedagógico feito, via de regra, num consultório particular. Por esta característica tem sido entendido como tratamento clínico. Procurando a clínica psicopedagógica, os pais fazem sua queixa a partir da queixa que a escola tem de seu filho. Os pais transmitem ao profissional a queixa que a escola tem da criança. Nesta circunstância, de alguma forma, pedem ao profissional psicopedagogo que lhes diga algo sobre o “problema de aprendizagem” de seu filho(a). Ao buscarem lugar fora da escola, em geral indicado pela mesma, os pais têm como expectativa imediata que o psicopedagogo “cure” seu filho. Em outra palavras, que resolva o “problema de aprendizagem de seu filho(a)”, dado que a escola se achou impossibilitada de “resolver”. A queixa diz respeito em geral a uma “não aprendizagem”, a um “não saber “ que aquela criança “revela”, “mostra”. Na linguagem do discurso pedagógico: “a criança apresenta problemas de aprendizagem”, o que justifica, repito, o encaminhamento feito “ fora da escola”...

Como se “apresentam tais problemas de aprendizagem”? Por vazios no lugar das respostas, por trocas de letras ou de conteúdos esperados nas respostas que a criança dá; caracterizadas também no discurso pedagógico como “respostas erradas”, dificuldades em somar, subtrair, multiplicar ou dividir etc, não apresentando aquilo que está convencionado para determinado conteúdo como certo. Pois o “erro” só tem sentido se confrontado com o “certo”; o “não saber”, ou a “ignorância”, só se caracteriza em função de um “saber”. Mas, “no lugar do conteúdo “certo”, ou do “saber”, a criança faz outra coisa, “apresenta outro conteúdo”, estranho ao “certo” - o “errado”, ou “deixa este lugar vazio”, o que também expressa o estranho”. Este tropeço não esperado, que insiste em se repetir apesar e através do esforço psicopedagógico da escola, apesar do esforço da própria criança em acertar, em não permitir que este “erro” apareça, o que nos diz? De onde ele vem? Certamente de outro lugar, não conhecido, que escapa ao pensamento manifesto e rotineiro da vigília - daquele que vigia para que ele não escape. Ele escapa de um lugar no qual a criança não tem controle, mas que atua sobre ela. O tropeço escapa à vigilância... ao controle... talvez da escola ou dos educadores. O tropeço na aprendizagem escapa do discurso pedagógico, escapa ao discurso educacional; está fora dele.

Então vamos percorrer o “tropeço” com ajuda de quem fez este percurso, Freud; ao invés de querer eliminá-lo porque escapou à lógica formal vigente do que se entende como aprendizagem, ao invés de querer reeducar o erro conduzindo-o a um acerto, ao invés de centrar nossa atividade numa postura normativa buscando corrigi-lo, como é comum na escola. Para isto é preciso ler o erro, ler sua mensagem, ler sua intenção, ler o que ele nos diz.

O conteúdo apresentado como um “erro”, ou o vazio em seu lugar, não se limita a esse lugar. Ou, em outras palavras, o pensamento ali manifesto não é ali pensado originalmente, pois se fosse não haveria “lugar para erro”. Se o pensamento pensado ali se originasse, não haveria instância para “erro”, pois ali supostamente estariam as condições objetivas para se subjetivizar o acerto... que não acontece. Então, embora estejamos falando de aprendizagem, temos que observar que a atuação do conteúdo manifesto numa aprendizagem não é diferente de qualquer outro conteúdo manifesto, assim como seus tropeços. O conteúdo manifesto não se origina nele próprio, mas paira sobre ele um conteúdo latente, de outra instância, de uma instância que se manifesta diferentemente da instância deste conteúdo manifesto; ou seja, da instância inconsciente. Assim, para ampliar o horizonte sob o qual poderemos percorrer o “erro” da criança que “não aprende”, temos que recorrer à concepção de aparelho psíquico de Freud. Ou seja, para ampliar a concepção do “erro” na aprendizagem, e percorrê-lo, temos que deixar a psicologia e nos remetermos à psicanálise, pois é a psicologia que nos conduz a corrigir o erro, e o que desejamos é percorrê-lo, é lê-lo, e não eliminá-lo de imediato; mas buscar o sentido de sua mensagem. E isto não é possível nos limites da psicologia. Embora fosse interessante discutir estes limites que a psicologia nos impõe, não pretendemos este caminho, que oportunamente poderemos fazer.

Acompanhando Freud, que partiu do sintoma histérico e construiu a teoria e a técnica da psicanálise, acredito que partindo do problema da aprendizagem que se manifesta no “erro”, no “não saber”, podemos olhar de modo diferente a aprendizagem e a intervenção psicopedagógica, percorrendo os “problemas de aprendizagem que se manifestam no “erro”, um não saber.

Em 1904, ao escrever “Sobre a Psicoterapia”, Freud faz uma avaliação sobre o método terapêutico que utilizava quando iniciou seu trabalho clínico tratando da histeria, ou seja, sobre a técnica hipnótica, ou sugestão hipnótica; justificando sua substituição pela técnica analítica:

“É lícito que eu assinale que o método analítico de psicoterapia é de efeitos mais penetrantes, e permite avançar mais longe, aquele através do qual se consegue a modificação mais ampla do enfermo. E se me é permitido abandonar por um momento o ponto de vista terapêutico, posso dizer a seu favor que é mais interessante, o único que nos ensina algo acerca da gênese da trama dos fenômenos patológicos. Na raiz das intelecções sobre o mecanismo das enfermidades anímicas que temos acesso, talvez seja o único método capaz de superar a si mesmo e de mostra-nos o caminho de outras variedades do influxo terapêutico.” (Freud, 1904; pág.249 - grifo meu).

Na conferência 27, de 1916/17, Freud se refere ao seu método dizendo:

“Com nossa terapia psíquica colocamos em outro lugar o conjunto todo, não ali onde acreditávamos discernir as raízes dos fenômenos, mas sim bastante distante dos sintomas: no lugar onde circunstâncias muito assombrosas ficaram acessíveis”. (Freud, 1916/17; págs. 396-397)

Freud buscava as causas originais dos sintomas histéricos, pois sua prática clínica lhe mostrou que não bastava tratar das causas imediatas e aparentes. Estas não davam conta do percurso feito pelo enfermo até manifestar tais sintomas. O método hipnótico tratava do sintoma em si, buscando de imediato sua eliminação, assim como certos métodos de trabalho psicopedagógicos buscam eliminar o erro de imediato, corrigindo-o. O método analítico, buscando a gênese dos sintomas patológicos, nos remete além do sintoma, ao lugar onde o sujeito se constitui e constitui seu sintoma. Ele nos remete, portanto, a outro lugar para tratar o sintoma. O método analítico, não olhando diretamente o sintoma, olha para o sujeito do sintoma em seu lugar de enunciação, de constituição. Em toda sua obra, Freud nos remete à história do sujeito, e como coloca Lacan: “a reconstituição completa da história do sujeito é o elemento essencial, constitutivo, estrutural, do progresso analítico”. (Lacan, 1979; pág. 21). E ainda, quando Lacan explicita o trabalho de Freud, quanto à singularidade do sujeito diz:

“Tomá-lo em sua singularidade, o que quer dizer isto? Quer dizer essencialmente que, para ele, o interesse, a essência, o fundamental, a dimensão própria da análise, é a reintegração, pelo sujeito, da sua história até seus últimos limites sensíveis, isto é, até uma dimensão que ultrapassa de muito os limites individuais”. (Ibidem pág. 21)

Convém então situar a compreensão da história que Lacan elabora a partir do trabalho de Freud:

“A história não é passado. A história não é passado na medida em que é historiado o presente - historiado no presente porque vivido no passado. O caminho da restituição da história do sujeito toma a forma de uma procura da restituição do passado”. (Ibidem pág. 21).

Se entendermos o “erro” na aprendizagem, destacadamente aquele que se torna crônico, repetitivo como um sintoma, nosso lugar no tratamento também muda. Deixamos de tratar do “erro”, negando-o, corrigindo-o positivamente para conduzi-lo a um “acerto”; passamos a olhar o sujeito do erro, e sujeito ao erro, passamos a tratar do sujeito que se manifesta no erro, percorrendo este processo, ou seja, sua história. Sobre isto Freud nos diz:

“A sugestão direta é uma sugestão dirigida contra a exteriorização dos sintomas, uma luta entre a autoridade do médico e os motivos da enfermidade. Ao praticá-la não se faz caso de seus motivos; só se exige do enfermo que sufoque sua exteriorização em sintomas”. (Freud, 1916/17 - Conferência 28; pág. 408).

Em “Sobre a Psicoterapia”, de 1904, Freud assinala:

“...a técnica sugestiva visa operar per via di porre; não faz caso da origem, da força e da significação dos sintomas patológicos, por outro lado deposita algo, a sugestão, que segundo se espera será suficientemente poderosa para impedir a exteriorização da idéia patogênica. A terapia analítica, de outra maneira, não quer agregar nem introduzir nada de novo, e com esse fim se preocupa com a gênese dos sintomas patológicos e a trama psíquica da idéia patógena, cuja eliminação se propõe como meta”. (Freud, 1904; pág. 250).

O que convém destacar é porque Freud dispensa a técnica hipnótica e constrói a técnica analítica. Certamente não trocaria uma pela outra sem uma razão clínica que a sustentasse. É ainda em “Sobre a Psicoterapia” que fala dessas razões:

“Ademais, reprovo a técnica hipnótica que nos impede de penetrar no jogo das forças psíquicas. Por exemplo, não nos permite individualizar a resistência com que os enfermos se prendem em sua enfermidade, mostrando-se refratários à cura; e a resistência é o único caminho que nos possibilita compreender sua conduta na vida.” (Freud, 1904; págs. 250-251).

Portanto, a questão da técnica de tratamento diz respeito à própria possibilidade de se operar o tratamento, no sentido de fazê-lo avançar e não estacionar.

Neste sentido, muitas técnicas psicopedagógicas que se assemelham à técnica hipnótica de uma cura aparente estacionam neste momento, no momento de uma aparente melhora, ou no momento em que a criança na escola começa a produzir alguns acertos ou transformações sobre o conteúdo em que errava. Em troca deles a criança começa a manifestar outros tipos de “erro”, ou outras manifestações “atrapalhadas”, “tropeços” de características diversas, que muitas vezes passam despercebidos pelo psicopedagogo que olha especificamente para o “erro” inicial manifesto pela criança, buscando saná-lo. Ao “eliminá-lo”, seu trabalho está terminado. Quando o “erro” não é corrigido, são encontradas justificativas de diversas naturezas para caracterizar a impossibilidade de aquela criança aprender. Neste caso, não se altera a técnica de tratamento e, conseqüentemente, nem a maneira de olhar para a criança que “não aprende”. Aparecem resistências... De quem? Freud nos ensina a ir mais além, além do imediato.

Freud identifica dentro da trama psíquica operada pela técnica hipnótica o aparecimento da resistência do sintoma, sua tendência em se repetir, e com ela o limite da técnica usada. Nesse sentido constrói uma técnica que, avançando sobre a anterior, isto é, considerando seus resultados imediatos, aparentes, e seus limites, busca tratar a resistência que se instala. Por que se instala a resistência? De onde ela vem?

Ao tratar da resistência, Freud constrói a técnica analítica e uma teoria que dê sustentação para a clínica analítica. Neste percurso, se encontra com a trama psíquica, reconstruindo-a na teoria. É assim que remete as manifestações humanas expressas em sintomas, nos lapsos e tropeços, para a instância onde se originam, ou seja, no inconsciente. Referindo-se ao alcance dos processos psíquicos conscientes em 1904, diz Freud:

“É que o alcance da vontade consciente não vai mais além dos processos psíquicos conscientes, e toda compulsão psíquica está fundada pelo inconsciente”. (Freud, 1904; pág. 255)

Assim caracteriza a terapia analítica:

“Esta terapia se baseia então na intelecção de que umas representações inconscientes - melhor: o caráter inconsciente de certos processos anímicos - são a causa imediata dos sintomas patológicos”... E, mais adiante: “O descobrimento e a tradução do inconsciente se realizam sob uma permanente resistência da parte do enfermo. A emergência desse inconsciente vem unida a um desprazer, motivo pelo qual o enfermo o recusa uma e outra vez”. (Freud, 1904; pág. 255).

Não há como tratar as manifestações patológicas, ou os tropeços, ou no caso, o “erro” da criança que aprende; seu “não saber”, sem entrar na trama dos processos psíquicos, sem olhar para ela, sem buscar a operação que faz e que mecanismos produz ao expressar um sujeito ao “erro”. Percorrer esta trama implica, pois, em percorrer o inconsciente, como ele se constitui, suas produções e seus mecanismos, como o próprio Freud o fez. Em 1916/17, Freud refere-se ao inconsciente como lugar de produções:

“Devemos representar esse inconsciente topicamente; devemos buscar em suas lembranças o lugar em que elas se produziram por obra da repressão. Se esta repressão se elimina, a substituição do inconsciente pelo consciente pode consumar-se sem dificuldades. Agora bem, como cancelar uma repressão assim? Nossa tarefa entra aqui numa segunda fase. Primeiro a busca da repressão, depois a eliminação da resistência que ela mantém em pé”. (Freud, 916/17 - Conferência 27; pág. 397)


2- O inconsciente - lugar do tropeço na aprendizagem

Na “Interpretação dos Sonhos”, Freud diz que o sonho é a realização de um desejo, e que este desejo é inconsciente. A Interpretação dos Sonhos, segundo o próprio Freud, é o paradigma do aparelho psíquico. Isto quer dizer que o processo de funcionamento psíquico dos sonhos é o mesmo de todo aparelho psíquico. Conseqüentemente, podemos tomar a Interpretação dos Sonhos como modelo explicativo do processo psíquico. Assim, seguindo a Interpretação do Sonhos, todo o pensamento manifesto, coerente e bem arrumado dentro de uma lógica formal, ou seja, consciente, tem sua origem em pensamentos latentes, inconscientes, nunca expressos como tais. A produção inconsciente só se expressa indiretamente através das formas que têm significados sociais, isto é, que possibilitam a vida social, através de uma linguagem formalizada na regras gramaticais, e que portanto permite a troca social com o outro. Entretanto, o eu da vivência cotidiana não percebe isto a não ser quando a coerência do pensamento manifesto é rompida, atrapalhando sua rotina. Ou seja: nos atos falhos como trocas de nomes, esquecimentos sistemáticos ou que chamem muito a atenção, inversões de nomes e lugares etc, e/ou através dos sonhos. Situando neste percurso o “erro” na aprendizagem, podemos olhá-lo como um ato falho, ou sintoma; enfim, como produção do inconsciente. No ato falho se manifesta um pensamento latente, inconsciente, movido por uma lógica diferente da lógica coerente da vivência de rotina. Este ato falho, “erro” na aprendizagem, ou não saber, manifesta a lógica de outro lugar, do inconsciente, de modo disfarçado, sem que seu significado seja expresso diretamente. O “erro” na aprendizagem expressa uma falta de sentido, ou seja, o significante. O “erro” na aprendizagem enquanto ato falho representa a realização de um desejo (inconsciente), de modo desfigurado. Por isso requer uma escuta e não sua supressão imediata. Ele traz uma mensagem cifrada que requer interpretação, já que seu percurso é de quem busca um sentido enquanto significante (ausência de significação), mas não está podendo encontrá-lo. Ele busca um sentido na ordenação da cadeia de significantes da lógica social-cultural, mas está impedido de fazê-lo. De onde vem este impedimento? Como ele atua?

Na Interpretação dos Sonhos, Freud diz que este impedimento é obra da censura. Ela atua impedindo que o desejo se manifeste do modo como está no inconsciente. Mas o desejo, buscando uma forma de expressão, apresenta-se à consciência disfarçado, desfigurado num desejo contrário ou num “não desejo”, iludindo assim o eu da consciência. Não temos acesso ao pensamento latente do desejo, que é inconsciente, senão pela análise que busca interpretar a mensagem cifrada dos sonhos, atos falhos, sintomas. Se não percorrermos este “erro” na aprendizagem em sua origem inconsciente, escutando-o, permaneceremos somente na instância manifesta, consciente. Limite este que é decorrente de uma atuação (psico)pedagógica sustentada pela psicologia; ou seja, pelo eu consciente. Desse modo, reduzimos nossa possibilidade de intervenção e no limite desta redução estaremos anexando como justificativas do “erro”, elementos que não pertencem a ele, que não são e nem estão incorporados nele. Resistências! De quem?... Quando a intervenção psicopedagógica permanece neste limite, opera um reducionismo do “erro” na aprendizagem, paralisa o sujeito do erro. Normatizando o “erro”, corrigindo-o, por obra e graça de técnicas (psico)pedagógicas, como acredita certo tipo de intervenção (psico)pedagógica, não permite que o sujeito do erro e ao erro, tenha acesso ao seu desejo cifrado neste “erro”, ou neste “não saber”.

Percorrendo o “erro” da aprendizagem assim como Freud percorreu os sonhos em seus processos constitutivos, verificamos que eles não são arbitrários. Os sonhos, os atos falhos como o “erro” na aprendizagem, possuem um sentido, uma lógica que lhes é própria. Evidentemente uma lógica diferente da lógica dos processos conscientes, isto é, uma lógica dos processos inconscientes. Vejamos como Freud, na Interpretação dos Sonhos, explica este processo:

“Temos averiguado que o sonho substitui uma quantidade de pensamentos que provém de nossa vida diurna e possuem perfeito enquadramento lógico. Por isso não podemos pôr em dúvida que estes se engendram em nossa vida mental normal. Nos pensamentos oníricos encontramos todas as propriedades que tanto apreciamos em nossas relações de pensamento, e que os caracterizam como operações completas de uma ordem superior” (Freud, 1900; pág. 582).

O modelo de aparelho psíquico que Freud apresenta na Interpretação dos Sonhos se compõe de dois sistemas ou instâncias: a instância consciente e a instância inconsciente, separadas pela censura. Um deles é o sistema pré-consciente, que possui uma quantidade de excitação, e que conforme sua intensidade e distribuição podem alcançar a consciência. Este sistema possui as chaves da mobilidade voluntária.

“Atrás dele está o que chamamos inconsciente, porque não tem acesso algum à consciência senão pela via pré-consciente, e ao fazer esta passagem, seu processo de excitação tem que sofrer modificações” (Freud, 1900; págs. 534-535).

O extremo do aparelho psíquico é sensorial, recebe estimulações que se encontram com um sistema de percepções que se estendem, caminham até uma mobilidade. As percepções marcam nosso aparelho psíquico com o que Freud denominou traços mnêmicos, constituindo a memória.

“A função que diz respeito a esse traço mnêmico chamamos de memória” (Freud 1900; 531).

Nesse sentido é que o aparelho psíquico pode ser também chamado de aparelho de memória. Os traços mnêmicos, produzem as impressões, e como diz Roza:

“Freud nos diz que se trata de uma memória de traços e que todo traço é traço de uma impressão” (Roza, 1993; pág. 52).

A impressão em si não tem poder de se conservar na memória. É através da associação que as impressões se conservam na memória. As associações, por sua vez se fazem em função dos graus diferentes de resistência e facilitações encontrados, se propagando pelo sistema psíquico, podendo se tornar consciente ou não. Mas, nesse percurso, ao se apresentarem na instância consciente, sofrem alterações, transformações, não se apresentando tal e qual existem no inconsciente. Como diz Freud:

“Sua característica residiria na intimidade de seus vínculos com elementos do material mnêmico em bruto, ou seja, se quisermos apontar uma teoria que vá mais longe, em graduações de resistência de condução desses elementos”. (Freud, 1900; págs 533).

Os traços se diferenciam, portanto, em função de sua intensidade e repetição, dispondo no aparelho psíquico facilitações e resistências para a mobilização dos mesmos numa cadeia de associações, podendo chegar a uma representação consciente ou permanecendo inconsciente. Assim os traços mnêmicos podem reter sua quantidade de excitação ou investi-la numa representação que se torne consciente. Neste caso, a memória adquire uma qualidade, o que é possível apenas no processo consciente, pois no processo inconsciente ela está investida apenas de quantidade de excitação.

É assim que os restos diurnos, ou estímulos sensoriais exteriores, ou uma situação qualquer, aparentemente indiferente (dentro da lógica consciente), atua como excitadora de impressões do passado, numa cadeia de associações que se processa regressivamente. Nesse percurso se formam várias elaborações intermediárias num círculo de representações. Acontece aqui um deslocamento, no qual a carga de investimento de uma representação de intensidade débil é investida em outras representações de maior intensidade, capazes de impor seu acesso à consciência. Nas palavras de Freud:

“Seguindo o mesmo caminho e idênticos princípios quando ouvimos que uma decisão sobre o que alcançará nossa consciência e o que será mantido fora dela, portanto, sobre o que pensamos, temos a impressão de algo patológico e o chamamos de erro lógico, se isto ocorre no estado de vigília... o processo psíquico que reconhecemos no deslocamento onírico se elucidará não por certo como perturbação patológica, mas como processo diverso do normal, de natureza mais primária”. (Freud, 1900; pág. 193 - grifos meus).

É assim que quando localizamos de modo restrito a “falha” na aprendizagem, o “erro” na aprendizagem no processo consciente, ele permanece como um erro lógico, passível de ser corrigido; quando na verdade sua manifestação é de natureza diversa da consciente; está umbricado numa cadeia de associações de natureza primária, inconsciente, portanto não passível de uma correção imediata. Ao se tentar corrigir o “erro”, tratando-o no limite do processo consciente, trata-se da deformação que ali aconteceu, como algo sem sentido, quando na realidade tem sentido ignorado (inconsciente). Busca realizar um desejo que se expressa por deformação, encontrando nessa forma específica e desfigurada de manifestação, um caminho possível para passar pela censura de modo disfarçado. Esta expressão aparece então como um “tropeço” no caminho lógico, consciente, da aprendizagem. Um tratamento que não percorra as associações em que este “erro” se inscreve para representar... a realização de um desejo recalcado é superficial e gerador de mais deformações e “erros”, já que aumenta a censura para a manifestação do desejo inconsciente. O processo de análise, no qual a cadeia de associações é retomada, ressignificada no discurso do sujeito, tem uma abrangência maior para o tratamento, pode situar a posição do “erro” na aprendizagem, a representação que o sujeito faz dele na cadeia de associações. Em outras palavras, ressignifica a representação que o sujeito faz do “erro”, e que ao mesmo tempo representa o sujeito através do “erro”. Possivelmente para ocorrência do “erro” na aprendizagem, alguma situação vivenciada, consciente e aparentemente indiferente, associou-se num círculo de representações excitadoras de impressões carregadas de intensidade e inconscientes, capaz de promover a manifestação consciente de uma representação, que, iludindo a censura, causou uma deformação no conteúdo manifesto, caracterizando o “erro” na aprendizagem.

Continuando, Freud nos diz:

“A deformação onírica (por deslocamento) foi produto da censura estabelecida na passagem de uma instância psíquica para outra. Esperamos que a análise dos sonhos possa descobrir como regra geral, entre as vivências diurnas, a fonte onírica efetiva, psiquicamente significativa e cuja recordação deslocou seu acento sobre uma lembrança indiferente”. (Freud, 1900; pág. 193).

Fica colocada mais uma vez por Freud a necessidade de fazer o percurso dessas associações. E, fazendo-o, Freud diz que a série de lembranças que as associações possibilitam são na verdade “lembranças encobridoras” que estão remetidas à infância. O sonho se apresenta como realização de um desejo inconsciente que se origina na vida infantil.

“Encontramos nos sonhos o menino que segue vivendo com seus impulsos”. (Freud, 1900; pág. 206)

As impressões infantis carregadas de intensidade e impedidas de se expressarem devido à repressão reaparecem exercendo uma atração sobre o pensamento consciente lutando por uma significação.

“Não é possível, como mostram os exemplos, que se reúnam vários cumprimentos de desejo nos sonhos; tropeçamos num só sentido que submete os demais, com o cumprimento de em desejo da primeira infância” (Freud, 1900; pág. 232).

O conteúdo manifesto, portanto, sempre traz as marcas dos traços da infância de uma maneira ou de outra, embora se revele deformado nos atos falhos, chistes, sonhos e sintomas. As associações feitas procuram ser compatíveis com o desejo e com a censura. Nesse sentido as representações buscadas são aquelas que em função da censura se articulam com o cumprimento do desejo; daí o efeito da deformação no conteúdo manifesto dos sonhos.


3- Pensamento como representação da perda do objeto de desejo incestuoso

Se o sonho é a realização de um desejo, é interessante que penetremos um pouco mais na concepção de desejo que Freud expressa na Interpretação dos Sonhos. Freud define o desejo como busca de satisfação obtida pela diminuição da carga de excitação acumulada, que coloca o psiquismo em movimento.

“Temos dito que só um desejo, e nenhuma outra coisa, é capaz de pôr em movimento o aparato, e que o decurso da excitação dentro deste é regulado automaticamente pelas percepções de prazer e desprazer. O primeiro desejar pode ter consistido em investir alucinatoriamente na lembrança de satisfação”. (Freud, 1900; pág. 588).

O desejo surge como busca de satisfação. E o “modelo” de satisfação buscado se encontra na primeira satisfação obtida na infância. Em outro momento, diz Freud:

“A reaparição da percepção é o cumprimento do desejo, e o caminho mais curto para este é o que leva desde a excitação produzida pela investidura plena da percepção... repetir aquela percepção que está ligada com a satisfação da necessidade”. (Freud, 1900, pág. 558).

Assim o desejo busca a satisfação primeira e plena obtida. O desejo busca repetir esta satisfação e conseqüentemente reter o objeto desejado. Mas esta busca que implica numa regressão é detida, inibida, desviada, e assim completa Freud:

"A completa atividade do pensamento que procura desde a imagem mnêmica até o estabelecimento da identidade perceptiva por obra do mundo exterior não é outra coisa senão um rodeio para o cumprimento do desejo, rodeio que a experiência fez necessário. Pensar não é senão o substituto de desejo alucinatório e em ato se torna evidente que o sonho é o cumprimento do desejo, posto que somente um desejo pode impulsionar a trabalhar o nosso aparelho psíquico. ...sonhar é um retorno da vida infantil da alma, já superada”. (Freud, 1900; pág. 559).

O desejo como retorno à satisfação primordial nos remete ao conteúdo sexual deste desejo. Freud nos conduz a isto quando retoma o mito de Édipo como primordial e fundante do desejo humano:

“Talvez todos nós nos tenhamos deparado em dirigir nosso primeiro impulso sexual para a mãe e o primeiro ódio e desejo violento sobre o pai; nossos sonhos nos convencem disto. O rei Édipo que matou seu pai Laio e desposou sua mãe Jocasta, não é senão o cumprimento de desejo de nossa infância... Retrocedemos espantados frente à pessoa em quem esse desejo primordial da infância se cumpriu, e o fazemos com toda a repressão que esses desejos sofreram desde então em nossa interioridade. Ao passo que o poeta naquela investigação vai trazendo à luz a culpa de Édipo, vai nos forçando a conhecer nossa própria interioridade, onde aqueles impulsos, mesmo sufocados, seguem existindo... Como Édipo, vivemos na ignorância desses desejos que ofendem a moral, desses desejos que a natureza forçou em nós, e que por detrás desta revelação bem quereríamos todos afastar a vista das cenas de nossa infância”. (Freud, 1900; pág. 271).

O pensamento consciente, portanto, está sempre produzindo conteúdos que ocupam o lugar do desejo sexual infantil recalcado, isto é, busca em todas suas produções singulares ressignificar a sexualidade infantil original, impedida. O recalque atua no sentido de impedir uma satisfação total que, se radicalizada, seria uma regressão total, isto é, a morte, pela ausência de desejo. Mas, ao se inscrever, o desejo busca a satisfação possível, sem a qual o desprazer seria insuportável dada a carga de excitação que teria de suportar, obtendo assim um quantum de satisfação. Mas este quantum de satisfação, de prazer, porque não pleno, requer uma nova inscrição do desejo, como eterna busca que se repete em torno de uma lembrança impossível de se inscrever porque caminha para um tempo perdido; ou que nunca pode se perder, porque talvez nunca tenha ocorrido a não ser numa representação imaginária e fantasmática, uma vez que o sujeito aí não existia, pois estava sujeitado ao desejo de outro, alienado neste desejo outro.

A interdição do incesto no drama edipiano instala uma ruptura com a natureza das pulsões. Diante dela as pulsões se desviam de uma satisfação sexual imediata, cujo objeto é encontrado na mãe, enquanto aquela que sustenta a vida da criança. A busca de algo perdido é a busca desta satisfação original perdida que retorna. O rompimento com a natureza pela interdição do incesto produz um vazio, uma falta que instala o desejo. Desejo que em última instância é de uma repetição da satisfação “natural” (fantasmática), perdida. A satisfação original que foi perdida devido à interdição do incesto desloca o sujeito da natureza para a cultura, lugar Outro, onde deverá de agora em diante buscar a realização do desejo. Na interdição do incesto surge em cena o pai, como terceiro entre dois (mãe e filho), cortando esta unidade (mãe-filho), constituindo a função paterna, ou seja, uma lei de ordenação. A interdição do incesto exercida pela função paterna organiza assim as relações de parentesco, isto é, o lugar de cada um na família e nos laços sociais. Ao deslocar a criança da natureza para a cultura, atribui-lhe um lugar na rede de laços sociais da cultura. Ela remete a criança para um lugar Outro, da cultura, pleno de simbolizações e significantes e organizados como discurso na linguagem e pela linguagem. Pois, a linguagem, combinando letras a princípio sem sentido, à partir das leis da gramática, constitui significados que expressam um código possível de relações da vida social, instituindo esse Outro da linguagem e da cultura. A criança deixa, pois, de se submeter à necessidade biológica para se instituir como sujeito do desejo, num intercâmbio de laços sociais, com outros. Deixa assim de estar alienada no desejo do outro (mãe), e pode se constituir como sujeito de seu desejo. As pulsões deslocadas de sua natureza investem na cultura. Todo percurso da criança de agora em diante é de uma construção (do objeto a) que possa recobrir a fissura da separação produzida pelo rompimento com a natureza. Um percurso que é regressivo-progressivo, ao retornar e repetir a busca da satisfação original, constrói objetos novos, sempre recriando-os, tendo à frente um passado que se presentifica.

“É a repetição da saída da mãe como causa de uma Spaltung no sujeito - superada pelo jogo alternativo, fort-da, que é um aqui e ali, e que só visa em sua alternância, ser o fort de um da e um da de um fort. O que ele visa é aquilo que está lá enquanto representado - pois é o jogo mesmo que é o Reprazentans da Vorstellung. O que se tornará quando, novamente, esse Reprazentans da mãe - em seu desenho tachado de toques, de guaches do desejo - vier a faltar?”. (Lacan, 1992; pág. 63)

Dessa ruptura do Um surge a separação entre o consciente e o inconsciente. Por sua vez, a ruptura permite a emergência do sujeito inconsciente em sua relação constituinte, ou seja, em relação ao próprio significante. O sujeito, então, está representado na cadeia de significantes, submetido a ela. Nela representa seu desejo submetido ao significante. Este desejo, porém, vem submetido ao significante em busca de significados. O sujeito e seu desejo se encontram na cadeia de significantes, o que permite Lacan concluir: “O significante representa o sujeito para outro significante”, e também o que a Spaltung (fissura, separação) define:

“Ela opera por toda intervenção do significante a ruptura entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado”. (Lacan, 1998G; pág. 781).

Estes significantes produzem a linguagem do sujeito, construindo seu discurso, por deslocamentos (metonímia), trazendo nele a metáfora do desejo (condensação). Nesse sentido:

“O enunciado não pode ser jamais tomado como tal, mas como enigma, rébus onde o sujeito se esconde”. (Lemaire, 1986; pág. 114).

O sujeito se esconde porque está preso numa rede de significantes que se remetem em associações a outro significante em busca de algo perdido. Nessa busca, o sujeito organiza essa concatenação e opera várias permutações intercambiáveis. Lacan retomando diz:

“O registro significante se institui pelo fato de que o significante representa o sujeito para outro significante. Eis a estrutura de todas as formações do inconsciente e eis também o que explica a divisão originária do sujeito. O significante produzindo-se no lugar do Outro (o simbólico), faz surgir aí o sujeito, mas também ao preço de o fixar. O que aí havia pronto para falar, desaparece por não ser mais um significante”. (Lacan, 1998B; pág. 854)

O significante desaparece porque pode encontrar no Outro (símbólico da linguagem, da cultura) uma representação, e neste sentido nela se fixa, desaparecendo. Mas surge de novo nas rupturas, lapsos, tropeços do discurso, podendo se fixar em Outro significado. Este é o percurso do sujeito representado pelo significante. O simbólico assegura assim a passagem da natureza para a cultura, introduzindo o sujeito numa movimentação em que ele pode se fixar e se soltar dos significantes existentes no mundo da cultura, na medida em que os significantes rompem o discurso do enunciado nos tropeços e lapsos que produz.

Podemos retomar Freud neste momento, quando ele diz:

“Toda completa atividade do pensamento que vai desde a imagem mnêmica até o estabelecimento da identidade perceptiva por obra do mundo exterior não é outra coisa senão um rodeio para o cumprimento do desejo, rodeio que a experiência fez necessário. Portanto o pensar não é senão um substituto do desejo alucinatório, e em ato se torna evidente que o sonho é o cumprimento do desejo, posto que somente o desejo pode impulsionar a trabalhar nosso aparelho psíquico”. (Freud, 1900; pág. 558).

Assim, os pensamentos como construções simbólicas da vida do sujeito estão a todo momento revestindo a fissura - Spaltung - provocada pelo rompimento entre a natureza e a cultura, numa compulsão repetitiva que imaginariamente retorna à natureza perdida, à satisfação originária perdida. Perdida, mas reconstruída pelo investimento do sujeito nos objetos da cultura-conhecimento, no sentido de ocuparem o lugar deixado pelo buraco da ruptura com a natureza. Poderíamos registrar que este lugar também é ocupado por várias produções ou re-construções, entre elas, pela re-construção de conhecimentos como produções de aprendizagem. Nesta atuação o sujeito busca aquilo que o rompimento registrou como falta; e que como falta instaura o desejo. Investindo nos objetos da cultura-conhecimento, constituindo-os como seu objeto de desejo, o sujeito se estrutura como sujeito do desejo. Estruturando o sujeito e suas construções está a linguagem, dando sentido aos significantes que nela estão depositados, através das leis de sintaxe, semântica e gramática. Desse modo, através dela, as representações simbólicas se tornam possíveis e as construções do desejo... do desejo... talvez de aprender... de conhecer...

A linguagem permite que o desejo perdido e inatingível (portanto sempre procurado sob formas renováveis) seja re-construído através de uma re-presentação simbólica, que no entanto nunca será o original, e sim um substituto desta através das mais variadas intercambiações possíveis que a cultura coloca à disposição, e que a criatividade humana possa realizar.

Assim, o pensamento consciente toma o lugar do pensamento alucinatório, substituindo o desejo alucinatório e dinamizando o aparelho psíquico.

Nesse percurso, o eu do enunciado esconde sempre o eu da enunciação. O eu do enunciado ao afirmar, nega; ao ter certeza, duvida; ao acertar, erra; ao errar, acerta. Isto porque, na representação de um imaginário vivido, que tem a propriedade de tornar possível a existência humana, o eu do enunciado busca confirmar em todas suas representações, de um lado, a negação da natureza que se impõe dada a interdição do incesto; e por outro lado, negar esta negação dispondo da representação simbólica como troca para uma certa quantidade de satisfação diante da satisfação original perdida.


4- Ressignificando o “erro” na aprendizagem...

Retomando o “erro” na aprendizagem, neste percurso, escutando-o, podemos dizer de forma lacaniana que ele é uma metáfora que o sujeito constrói e que o representa. Neste sentido não podemos olhar o “erro” isoladamente buscando corrigi-lo, normatizá-lo ou eliminá-lo, pois ele nos remete ao sujeito, à sua história como metáfora que simboliza, ao fim e ao cabo, sua posição singular diante da interdição do incesto. Isto é, como este sujeito singular está representando seu desejo singular e o tipo de construção que está podendo (não podendo) realizar, para recolocar este desejo numa cadeia simbólica (do Outro). Normatizar o “erro”, seu “não saber”, é negar ao sujeito a possibilidade de sua constituição simbólica, deixando-o alienado no desejo do outro - que corrige, que normatiza ou elimina.

Somente percorrendo a história singular desse sujeito, isto é, sua posição diante da interdição do incesto, podemos escutar a metáfora do erro que representa o desejo deste sujeito e, portanto o sujeito, e intervir psicopedagogicamente apostando na sua emergência. Reviver o passado, e nele como se estruturou o estatuto deste sujeito, passa a ser o caminho possível. Ao reviver este passado, no entanto, temos que considerar que o passado não é o passado morto de um tempo que já passou, mas que atua no presente, pois os traços mnêmicos produziram impressões na memória carregadas de excitações, que não conhecem a organização formal do tempo, e de alguma forma estão atuando. Isto nos coloca diante da especificidade da intervenção psicopedagógica. O que se destaca não é a relação entre duas pessoas, uma relação intersubjetiva, pois como diz Freud e Lacan destaca:

“ - o fato de que o sujeito revive, rememora, no sentido intuitivo da palavra, os eventos formadores de sua existência, não é em si mesmo, tão importante. O que conta é o que ele disso reconstrói” (Lacan, 1979; pág.22)

Chegamos, acredito, a um limite significativo que separa uma intervenção psicopedagógica ortopédica de uma escuta.. Numa relação intersubjetiva, o que se reproduz é a vivência dual da mãe com a criança, num círculo de satisfações que se complementam, instaurada no registro dos significantes. Neste registro o sujeito está alienado no desejo do outro, e portanto não pode se constituir sujeito de seu desejo. Ora, quando Freud constatou em seu trabalho clínico a presença da transferência, avançou teórica e clinicamente. Então, a partir da transferência, Freud modela a técnica e a teoria analítica tendo como eixo a transferência.

“Em qualquer outro tratamento sugestivo, a transferência é respeitada cuidadosamente, deixada intacta; no analítico ela mesma é objeto de tratamento e é decomposta em cada uma de suas formas de manifestação para a finalização de uma cura analítica, a transferência mesma deve ser desmontada, e se então vem e se mantém o êxito, não se baseia na sugestão, mas na superação das resistências executada com sua ajuda na transformação interior promovida no enfermo” (Freud, 1916/17; pág. 412).

Na conferência 27, Freud destaca a direção do trabalho clínico centrado na transferência de maneira que parece atingir o fundamento do trabalho analítico:

“Quando a transferência atingiu um grau de significação o trabalho das lembranças vai para o fundo da cena. Não é então incorreto dizer que não se está mais tratando da antiga enfermidade do enfermo, mas com uma neurose recém criada e recriada que substitui a primeira. ...Todos os sintomas do enfermo abandonaram seu significado originário e se incorporaram a um sentido novo, que consiste num vínculo com a transferência. Destes sintomas subsistiram alguns, que admitiram essa remodelação. Agora bem, a formação desta nova neurose artificial coincide com a eliminação da enfermidade, que trouxe a cura, com a solução de nossa tarefa terapêutica”. (Freud, 1916/17: pág.404 grifos meus).

Freud acentua que a reconstrução é feita na transferência e pelo manejo da transferência. Tendo a transferência como eixo de seu trabalho clínico foi que avançou em direção às raízes da doença, portanto de sua cura. É na transferência que o sujeito revive e ressignifica sua posição diante da interdição do incesto, isto é diante da lei do pai, podendo se constituir como sujeito de seu desejo. Não basta recordar, é preciso reconstruir. E a reconstrução implica numa posição do analista, como analista, na relação transferencial. O que isto significa? Significa que para o sujeito recordar e elaborar tem como suporte o desejo do analista e não a pessoa do analista; o que estrutura a função do analista. A pessoa do analista deve se subordinar à função do analista, para permitir, pela via do desejo do analista, a emergência do inconsciente do sujeito, possibilitando do lugar de analista que o sujeito entre em contato com seu inconsciente. A função do analista como lugar permite ao sujeito recordar os conteúdos de suas reminiscências, reconstruindo-os na linguagem, podendo desse modo ressignificá-los. O analista como lugar remete o sujeito à fissura produzida pela ruptura entre a natureza e a cultura, em função da proibição do incesto. Fissura esta que registra a falta que promove o desejo, a reconstrução do desejo do sujeito e do sujeito do desejo, possibilitando a este uma existência propriamente humana.



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