Textos Inéditos

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A Insatisfação Necessária para a Aprendizagem

MARIA LUIZA ANDREOZZI

Leitura e escrita passaram a ser palavras muito usadas nos processos de aprendizagem iniciais das crianças, como se fossem aquisições comuns, “normais” das crianças por volta de 5, 6 ou 7 anos. Existem ainda crenças de que com a idade a criança aprende naturalmente, como se a idade, ou seja, a natureza biológica por si só, garantisse aquisições de natureza social como a leitura e a escrita. Infelizmente ainda paira na cabeça de muitos pais e educadores a ultrapassada concepção de que a biologia, ou a herança genética fornece tudo o que a criança precisa para viver em sociedade. Ou seja, a concepção de que a inteligência é herdada geneticamente.

Por outro lado, também existe a crença oposta de que tudo depende da “estimulação”. Ou seja, se a estimulação for adequada podemos fazer a criança aprender qualquer conceito sofisticado. Em torno da estimulação encontram-se pais e educadores dando verdadeiros shows com a grande parafernália dos chamados “objetos estimuladores” e “brinquedos educativos”, ou aulas que às vezes se transformam em “movimentos aeróbicos”.

Isto porque reza o código da chamada educação moderna que as aulas devem ser ativas; e este “ativo” ficou traduzido como movimento físico. Como se pensar e não se movimentar fisicamente fosse passivo. Pais e educadores ficam altamente ansiosos em busca de “novos estímulos para uma criança desmotivada em suas tarefas escolares”. Está suposto aí que a motivação vem basicamente de fora, e que a criança é altamente dependente deste estímulos de fora. Uma criança assim tratada pode se tornar passiva, deixando de investir a partir de seus interesses. Espera pela “novidade dada pelo outro”. Perpetua a dependência do outro, professores ou pais. Dentro desta concepção, a aprendizagem da leitura e escrita fica dependente de estimulação e passa a depender do chamado “ambiente externo”. Aqui ainda resta algo para o educador fazer: a atividade educacional fica intensificada, pois na crença anterior de que tudo depende da natureza biológica da criança, traduzida por “maturação”, nada resta à educação, ou seja, ao social. No entanto, ao fim e ao cabo, pais e educadores como “agentes possuidores dos estímulos” para a criança, ficam investidos de muito poder sobre a criança, e imaginam controlar o que seus filhos farão, como serão, aquilo que devem fazer aqui e agora... De certo modo passam a acreditar que podem determinar o futuro de seus filhos e alunos por meio do controle dos estímulos. Ocorrem aí decepções dos pais, educadores e das próprias crianças.

Outra crença que a modernidade alimenta para a educação é de que “a criança não pode ser frustrada senão ficará traumatizada”. Em torno do “não traumatizar a criança”, a famosa estimulação visa sempre agradá-la, satisfazê-la, na medida em que esta criança responde aos estímulos satisfazendo aos pais e professores (que também não querem ser frustrados). Assim, os educadores respondem à criança no registro do prazer imediato, da utilidade imediata, mesmo às questões que visivelmente não têm nenhum prazer imediato nem utilidade funcional objetivada no momento. Por outro lado, perpetuam o brincar infantil, “para não frustrar a criança”. Os educadores respondem à criança, mesmo sendo adultos, de um lugar infantil, pois pertence ao infantil a satisfação imediata, a dificuldade e a ansiedade de esperar um outro tempo - tempo do adulto. Promovem a infantilização. A educação moderna se infantiliza na medida em que seu futuro, ou seja, seu projeto para o futuro se esgota no presente, com pouca ou nenhuma tolerância sobre o que não é obtido num curto prazo. Claro que muitas vezes isto não aparece explicitamente, mas de modo oculto. Quando os pais se fixam num futuro imaginado para os filhos, de modo a se realizarem e satisfazerem através deles; quando a escola corre atrás desta demanda dos pais, buscando satisfazê-los; e os professores ensinam buscando sua satisfação na produção dos alunos; o prazer imediato infantil e narcísico é que movimenta todo este processo. Está implícito que o futuro está no presente (uma vez que já está aqui e agora determinado), com pouco ou nenhum espaço vazio que represente o vir-a-ser (futuro) naquilo em que ele é diferente do que está imaginado. Desse modo, o que é feito para não frustar pode causar enormes decepções.

Se situarmos a leitura e escrita nesse processo, acompanhamos as dificuldades com que as crianças revelam nestas aquisições; ou a maneira mecanizada e sem sentido com que ela se faz, mesmo em crianças com “bom desempenho escolar escolar”. Sobretudo diante da ansiedade dos pais que pretendem a alfabetização o mais cedo e rápido possível. Por que a pressa? Parece que aí se revela aquilo do prazer imediato infantil, sem tempo vazio para que o vir-a-ser futuro seja construído.

A criança que na verdade se organiza a partir da demanda dos pais fica pressionada ao fim e ao cabo a satisfaze-los, bem como a escola. Desse modo, as relações se circunscrevem enquanto relações de prazer, de satisfação mútua: pais-escola; criança-pais; escola-criança; todos buscando se satisfazer mutuamente, fechados num círculo narcísico, em que o eu se mantém sustentado pelo prazer que o outro oferece.

Ora, a aprendizagem da leitura e da escrita enquanto referente simbólico da cultura está inscrita numa quantidade de frustração, de insatisfação. O número dois - 2 -, para ser conceituado naquilo em que a cultura reconhece e simboliza como produção do conhecimento acumulado historicamente, NÃO pode ser aceito como sendo por exemplo um patinho (naquilo em que graficamente possa se assemelhar com um patinho); ou permanecer como duas unidades de lápis e assim se fixar. Ou seja, a particularidade imaginária com que alguém pode representar um número, uma letra, um conceito não pode se sobrepor àquilo que está reconhecido e simbolizado socialmente. Sem o reconhecimento social não seriam possíveis as trocas, ou seja, a própria relação social como troca, pois cada coisa seria para cada um, outra “coisa” imaginada, a que o outro não teria acesso, pois a particularidade de um é que estaria predominando.

Os conceitos seguem leis universais, não posso mudá-los ao meu prazer. Posso colocá-los em discussão a partir da regra que os constituiu. Submetida a esta regra ou lei, posso introduzir novos elementos aos que já existem conceituados. Para a aquisição dos conhecimentos, que seja, a leitura e a escrita; ainda, o número dois, tem-se que reprimir as duas unidades de lápis, elas deixam de existir para que o dois - 2- represente-as simbolicamente, ocupe esse lugar, substituindo-as enquanto conceito que representa “* *”. Para construir o conceito de “número dois” a criança passa por uma dose de frustração, de insatisfação; perde uma dose de satisfação imediata, a de ver “* *” por exemplo, os dois lápis; que no entanto pode repô-la num outro plano, no plano da elaboração simbólica da cultura, onde “2” substitui “* *”, quando conceitua o número dois. Perpetuar o patinho ou a presença de duas unidades (lápis, carrinhos..) esperando que “naturalmente” a criança conceitue o dois é perpetuar uma posição infantil que tem seu lugar para ser substituída.

Alguém, destacadamente o professor, em nome da cultura - como representante da cultura, e não porque ele simplesmente o quer (narcisicamente) -, deve impedir a perpetuação do patinho, da presença das unidades, impedindo a continuidade do prazer imediato particular para que a construção do número dois, enquanto produção socializada, representação simbólica da cultura, possa ser elaborada em substituição à presença física das unidades. Estamos falando aqui que o acesso à cultura só é possível com uma dose de repressão da satisfação imediata, ou seja, com uma dose de insatisfação por onde a cultura entra enquanto substituição, enquanto troca simbólica. A cultura enquanto um outro lugar que não o infantil, é o lugar das trocas simbólicas onde estão inscritas as aprendizagens. Nela é possível a busca de satisfação possível, (em substituição à da infância reprimida). Não será uma satisfação imediata, mas mediada pela cultura, pelo simbólico da cultura, no seio das trocas simbólicas; e certamente não será a mesma da infância.

Mas enquanto pais tiverem filhos para sua satisfação imediata, demandando sobre eles o que desejam na verdade para si próprios, e a escola se direcionar a atender diretamente a demanda dos pais, como se esta fosse “sua proposta”, estaremos fechados num círculo narcísico em que o acesso à cultura enquanto troca simbólica e produção de conhecimento fica comprometido para as crianças, para os pais e para os professores. A educação se infantiliza, fragilizando o acesso às trocas simbólicas, ou seja, às aprendizagens. A cultura empobrece porque é olhada como algo que tem que repetir o mesmo, ou seja, o presente sem futuro, que aqui e hoje está determinado e programado para o “futuro”. A cultura passa a ser vista como um espelho do eu, e aí ela se dilui porque deixa de existir como algo diferente que permite criação. A cultura se torna na modernidade sinônimo de obter informações pela internet. A aprendizagem da leitura e da escrita fica mecanizada, sem sentido, mesmo em alunos que “vão bem na escola”.

Não é a toa que hoje se discute muito sobre a aprendizagem da leitura e da escrita e sobre o “aprender brincando” (no sentido de manter a modalidade infantil). A metodologia de ensino busca frenética e sintomaticamente como tornar fácil para a criança algo que é difícil e como tornar semelhante algo que é diferente.

As aprendizagens, desde a leitura e a escrita, estão inscritas como trocas simbólicas que fazem sentido para o sujeito, criativamente. Para isto, um “não” precisa ser introduzido, um “não” firme e carinhoso, que mostre as alternativas de troca para a criança, as alternativas de construção no plano simbólico, daquilo que ela perde no particular do imaginário infantil.

Estamos falando de um “não” que introduz as relações simbólicas, culturais; longe da escola da palmatória a que o “não” pode remeter alguns. Pois a modernidade e, com ela, a educação moderna, ao se construir como liberalismo, dissimulou a palmatória, disfarçando os controles e a disciplina e legitimou um tipo de “não” - naquilo do “não pode ser diferente”, a igualdade, em que aparece só o sim - um mesmo modelo de desempenho para todos.


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